Enchentes

Solos: Recuperação do ambiente produtivo gaúcho deve levar mais de dez anos

Entenda como deve ocorrer o processo de recuperação dos solos agrícolas do Rio Grande do Sul após enchentes

As chuvas e enchentes entre os meses de abril e maio deste ano causaram grandes perdas para o agronegócio do Rio Grande do Sul, incluindo perdas de estruturas, grãos armazenados e lavouras. No entanto, o principal prejuízo para o setor é o impacto das águas nos solos. Pelo menos 2,7 milhões de hectares registraram perdas de fertilidade e erosão hídrica, de acordo com a Emater/RS-Ascar. Esses prejuízos foram registrados em 405 dos 497 municípios do estado.

Os impactos nos solos e a magnitude das perdas diferem em cada região e até mesmo dentro de uma mesma propriedade rural. Algumas áreas tiveram danos mais superficiais e já puderam ser recuperadas para receber os cultivos de inverno. Em outros locais, a recuperação levará anos. “De uma forma geral, tirando aquelas áreas com pequenas erosões, eu não espero que nós tenhamos um ambiente produtivo igual ao que nós tínhamos antes do que aconteceu numa escala menor do que dez anos”, afirma o professor Michael Mazurana, do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

As perdas de solo se acentuam na Depressão Central do estado, área que abrange a região dos Vales e metropolitana de Porto Alegre. “Há locais em que o produtor rural literalmente ficou somente com a escritura física. Não tem mais aquela gleba de terra porque às vezes o rio mudou de curso. Então aquela área que ele tinha antes de cultivo, hoje não existe mais, o rio usou aquela parte ou ela foi levada embora por esse evento extremo”, relata o professor.

Onde for possível, o desafio dos produtores rurais gaúchos é recuperar o solo para retomar a produção. Esse processo é complexo e envolve aspectos químicos, físicos e biológicos. O Departamento de Solos da UFRGS, em conjunto com a Secretaria da Agricultura Estadual e a Emater-RS/Ascar, está divulgando uma série de notas técnicas com orientações para recuperação do solo gaúcho após as enchentes. Os documentos estão disponíveis aqui.

Passos para a recuperação

Identificar a origem principal do problema e o tipo de dano em cada área é o primeiro passo para a recuperação. Em alguns locais do estado, será preciso inclusive repensar a forma como os solos serão utilizados daqui para frente e se será possível retomar o uso agrícola. Apesar da particularidade de cada área, é possível organizar o processo de recuperação dos solos em cinco grandes etapas.

É preciso identificar se áreas foram lavadas, com a remoção do solo fértil, ou se elas receberam sedimentos | Foto: Laboratório de Solos – UFRGS/Divulgação

O primeiro passo é identificar se áreas foram lavadas, com a remoção do solo fértil, ou se elas receberam sedimentos. No segundo caso, é preciso definir também qual tipo de sedimento está presente na área. Há cenários com sedimentos mais finos, como argila, com detritos menores, como pedras, e outros com detritos grandes, como troncos de árvores e raízes.

“Nesses cenários de deposição que receberam um volume maior de detritos grosseiros, a primeira situação é remover aquela parte mais grosseira de cima para ter acesso ao material que ficou embaixo, aquela camada, vamos dizer assim, de deposição com algum grau de fertilidade”, aponta Mazurana.

Após a remoção dos detritos, é preciso avaliar a condição de fertilidade do solo. Além das áreas que receberam sedimentos, há também solos que foram lavados e que toda a nutrição foi levada embora. Para isso, é preciso coletar amostras para análise química.

Além disso, a recomendação é que seja coletada também uma amostra de solo com estrutura preservada. “Por exemplo, você vai pegar um cano de PVC, um cano de metal com dez centímetros de diâmetro e você vai cravar ao lado do local de coleta da fertilidade do solo e vai tirar uma amostra de solo, um cilindro com a estrutura naquela condição preservada. Para que a gente tenha algumas informações da parte física daquele material”, explica o professor.

Nessa etapa será definida qual a textura, porosidade e densidade do solo, o que vai determinar, junto com o resultado de fertilidade do solo, quais ferramentas mecânicas podem ser utilizadas em conjunto com a correção química. Em áreas de várzea, que tradicionalmente possuem problemas de drenagem, também é preciso resolver esse aspecto antes do trabalho mecânico.

A partir desse processo, serão introduzidas plantas para permitir a reconstrução da biologia do solo. “Eu vou começar a colocar carbono naquele sistema via plantas e essas plantas, trabalhando na parte radicular e com a parte aérea, minimamente naquela condição física criada por vezes por meio de uma máquina […], vão tornar aqueles nutrientes absorvíveis e vão começar a restabelecer uma comunidade microbiana para fazer com que aquele solo funcione como um sistema efetivo”, descreve Mazurana.

Demora

A produtora Letícia Conzatti Piccinini, de Roca Sales-RS – um dos municípios mais afetados do estado – ainda vive os impactos da última enchente e conta que o processo de recuperação está demorando mais do que o esperado.

Produtores de Roca Sales-RS enfrentam dificuldades para avançar com recuperação no solo | Foto: Arquivo Pessoal

“Embora o tempo esteja passando, a gente não tem conseguido dar o prosseguimento que a gente gostaria nesses solos. Porque muitas das áreas ainda tem uma quantidade grande de lodo, embora a gente tenha tido alguns dias de sol, isso não é suficiente para secar esse material orgânico, esse material é bastante heterogêneo, então tem alguns lugares com bastante lodo e tem alguns lugares com mais areia, é uma heterogeneidade bem grande”, relata.

A família optou por prosseguir com o plantio de azevém no inverno para o solo não ficar descoberto e vulnerável. Nas áreas de várzea, a semeadura precisou ser realizada fora da janela e com drones, já que não é possível transitar com as máquinas no terreno. “A gente tem insistido bastante nas lavouras, embora a gente saiba que elas não vão ter o rendimento que a gente gostaria”, explica Letícia.

Além dessas áreas com deposição, a propriedade ainda tem áreas mais altas, onde o principal problema foi a erosão do solo. “Embora a gente trabalhe com plantio direto já tem alguns anos, em alguns locais onde a água tomou caminhos preferenciais houve alguns pontos de erosão”, relata a produtora.

Escolha das plantas

Nesses cenários encontrados após as enchentes, qualquer planta é considerada bem-vinda para estabilizar e proteger o solo. Nos casos em que é possível estabelecer cultivos de interesse econômico, uma recomendação são as gramíneas, como o milho, milheto e sorgo. “São espécies que, além de produzir bastante biomassa na parte aérea, também conseguem colocar significativa quantidade de raiz, raízes finas naquela estrutura de solo muito danificada”, explica o professor Michael Mazurana. Também é possível introduzir leguminosas, como a soja.

A deposição de sedimentos foi tamanha naquele local que talvez a solução seja deixar um ano ou dois em repouso.

– Michael Mazurana, professor do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Existem casos, porém, em que não será possível estabelecer nenhuma cultura de forma adequada. “A deposição de sedimentos foi tamanha naquele local que talvez a solução seja deixar um ano ou dois em repouso, fazendo alguma prática mecânica para tentar aliviar um pouco a carga de sedimentos e implantar em cima culturas que não são tradicionais aqui do estado”, aponta. Entre elas, uma opção é a braquiária.

Prevenção

A última etapa do processo é disciplinar o fluxo de água que chega aos locais afetados, identificando os pontos onde a erosão foi maior e instalando barreiras mecânicas. “Aquele solo depauperado tem pouca capacidade de infiltração de água. Então, se não infiltra, tudo o que chegar vai sobrar e, se sobrar, escoa. Então vai de novo acelerar o processo. Uma barreira mecânica, um cordão vegetado ou uma curva em nível ou em desnível, nos locais em que é possível fazer isso, vai convergir muito bem”, esclarece o professor.

Desafios

Cinco meses depois das enchentes, os desafios em avançar com a recuperação dos solos são evidentes. No caso da Granja Piccinini, em Roca Sales-RS, ainda não foi possível sequer realizar a coleta para análise química devido aos poucos dias de tempo seco. Ainda assim, as mudanças no solo já são evidentes, especialmente através dos resultados do azevém. A cultura apresenta pontos com crescimento prejudicado e colorações diferentes.

“Vamos ter muitas manchas e termos que entender o que está acontecendo para regularizar e padronizar, embora toda área tenha uma certa heterogeneidade, vamos ter que buscar equilibrar novamente para voltar a ter boas produtividades”, afirma Letícia, que também é engenheira agrônoma.

Antes disso, é preciso investir na limpeza das áreas com máquinas, o que também ainda não é viável devido à condição do solo. “Ainda é muito difícil, a gente já devia estar com o solo um pouco mais seco, embora setembro não esteja sendo tão chuvoso, ainda não estamos conseguindo entrar nas áreas para fazer essas limpezas, ajeitar essas áreas e conseguir fazer essa primeira incorporação que vai ter que ser feita, senão a gente não vai conseguir fazer o plantio nessas áreas”, avalia. Só depois disso seria possível realizar a correção química com adubos e nutrientes.

“A partir disso, então seria um trabalho forte com rotação de culturas e construindo essa qualidade, essa vida do solo novamente, já que grande parte foi embora”, considera Letícia. Com todos esses desafios e incertezas, o tempo que os solos levarão até se recuperar continua incerto.

No estado, o processo de recuperação vai depender de diversos elos da cadeia produtiva. Apesar de um corpo técnico robusto e ferramentas de análise química do solo bem estruturadas, ainda há gargalos no processo, como a dificuldade de compreensão da importância dos aspectos físicos do solo para a infiltração da água. “A parte física não tem manual porque cada situação é diferente”, aponta Mazurana. Essa é uma das principais dificuldades sentidas na transmissão dos conhecimentos sobre solo para o campo.

Pelo menos 2,7 milhões de hectares registraram perdas de fertilidade e erosão hídrica | Foto: Fernando Dias/Seapi

Sistema de plantio direto

Além de recuperar o solo para a produção, é preciso prepará-lo para o futuro e para as mudanças climáticas, que aumentam os riscos de novas condições extremas de clima. A retomada do sistema do plantio direto pleno é um elemento considerado fundamental para a conservação do solo e da água.

“Até quando a gente, como sociedade, vai aceitar produzir grãos, proteína animal, o que for, com esse elevado aporte de insumos externos e com essas elevadas perdas, por exemplo, de solo, que é um bem que não é recuperável na nossa escala de tempo de vida aqui nesse planeta?”, questiona Mazurana.

Na avaliação dos especialistas, o sistema foi simplificado ao longo dos anos, o que ampliou os danos causados pelas chuvas extremas e também os prejuízos das últimas estiagens no estado. O sistema de plantio direto prevê, além da palhada na lavoura, a rotação de culturas, não queimar o solo e a implantação de microbacias hidrográficas.

“É fazer com que a água da chuva não vá para fora da lavoura, que ela fique na lavoura e possa ser armazenada para ser disponibilizada num grau seguinte, em períodos em que não chove com frequência”, explica o professor. Além disso, esse processo evita a perda de nutrientes do solo, o que permite o aumento da produtividade. “Eu saio dos meus 50, 55 sacos de soja por hectare, por exemplo, e vou para meus 58, 60, sem aumentar a área”, destaca.

Para essa retomada, a ampliação de bonificações financeiras e redução de taxas de juros são práticas que poderiam incentivar a adoção de práticas conservacionistas. Atualmente, o Plano Safra prevê o Renovagro – Programa de Financiamento a Sistemas de Produção Agropecuária Sustentáveis – com taxas de juros reduzidas de 7% a 8,5% ao ano. Ele inclui investimentos em recuperação de pastagens degradadas, implantação e melhoramento de sistemas de plantio direto “na palha” e adoção de práticas conservacionistas de uso, manejo e proteção dos recursos naturais, incluindo correção da acidez e da fertilidade do solo.

A adoção de práticas conservacionistas, incluindo o sistema de plantio direto, tem o potencial de gerar diferentes ganhos ao agronegócio e à sociedade em geral. “Vai vir menos sedimentos para as bacias mais baixas, os lagos artificiais e barragens vão assorear menos, a água que vai ser captada em toda região de captação, nas bacias que as empresas usam para mandar água para as cidades, vai precisar ser tratada com menor quantidade de carvão ativado porque é uma água mais limpa e a gente começa a fazer a máquina girar em uma outra escala”, defende Mazurana.

A cada prática conservacionista que a gente vai adicionando no sistema, vamos vendo os benefícios ao longo dos anos.

Letícia Conzatti Piccinini – produtora rural e engenheira agrônoma

Apesar da erosão em áreas mais altas e da dificuldade de adotar plenamente todos os princípios do sistema plantio direto, a produtora Letícia Piccinini já percebeu a maior resiliência dos solos na propriedade de Rocca Salles, especialmente depois das enchentes de 2020, de setembro e novembro de 2023 e agora em maio de 2024. “A gente conseguiu perceber que a semeadura direta do azevém segurou e muito o solo, manteve inclusive a palha que tinha antes do plantio do azevém, a gente abria as linhas de cultivo e percebia que a palha ainda estava lá […] A cada prática conservacionista que a gente vai adicionando no sistema, vamos vendo os benefícios ao longo dos anos”, relata Letícia.

Moral

Além de todos esses fatores, um aspecto pode estar sendo negligenciado, a condição psicológica dos produtores rurais que foram afetados, muitos tendo perdido também máquinas, galpões e até mesmo as próprias casas. “A gente encontrou no campo produtores, literalmente, caminhando a esmo, olhando para lavoura, olhando para o cenário criado e tentando encontrar forças de algum local para dar o passo seguinte”, relata Mazurana.

A gente encontrou no campo produtores, literalmente, caminhando a esmo, olhando para lavoura, olhando para o cenário criado e tentando encontrar forças de algum local para dar o passo seguinte.

– Michael Mazurana, professor do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Além de apoio financeiro, é preciso apoiar psicologicamente e dar suporte técnico aos produtores para que voltem a investir nas suas áreas, inclusive adotando práticas que colaborem para a sustentabilidade dos sistemas produtivos em consonância com a preservação ambiental. A partir desses princípios, será possível não apenas retomar, mas fortalecer o setor no Rio Grande do Sul.