Nos últimos 65 milhões de anos, a Floresta Amazônica, quando vista como um sistema complexo em que se interconectam espécies, ecossistemas e cultura humana, destacou-se pela resiliência à variabilidade natural do clima. Passou, praticamente, incólume pela Era Cenozoica, vivenciou drenagem de rios, expandiu-se, contraiu-se, mudou sua fisionomia em áreas específicas, suportou condições secas e frias do chamado Último Glacial Máximo (há 21 mil anos) e do holoceno médio (há 6 mil anos) e persistiu, mesmo com a presença humana na região e seus incêndios intencionais ou não. Dito isso, então, não carece qualquer preocupação com a Amazônia? Não há risco, ela vai suportar, independentemente das ações antrópicas e da mudança do clima global? Devagar com conclusões apressadas.
Em exaustivo artigo, publicado na revista Nature, edição de 15 de fevereiro de 2024 (v. 626, p. 555-564), sob a liderança de Bernardo M. Flores, da Universidade Federal e Santa Catarina, um grupo de pesquisadores de várias instituições nacionais e internacionais, avaliou os riscos e, especialmente, deu destaque a potenciais transições críticas, algumas ora em curso, na Amazônia.
Nunca é demasiado rememorar que, na Amazônia, estima-se, estaria concentrada mais de 10% da biodiversidade terrestre, que capacidade de armazenagem de Carbono na floresta pode equivaler de 10 a 20 anos do total anual das emissões globais de CO2 (150-200 Pg C). Ainda, que, pela evapotranspiração da mata, o clima da Terra pode ser esfriado e estabilizado, que a sua umidade é crucial para o regime de chuvas da própria região e de outras partes da América do Sul, cujos locais que seriam mais áridos, caso a floresta não exercesse esse tipo de serviço ambiental, a exemplo do Bioma Pantanal e da Bacia do Rio da Prata (que nos diz respeito, no sul do Brasil). E mais: serve como local de moradia para mais de 40 milhões de pessoas, incluam-se, além das cidades incrustradas na floresta, 2,2 milhões de indígenas (300 etnias), afrodescendentes e comunidade locais tradicionais.
Não se pode ignorar os riscos da mudança do clima global e seus potenciais impactos no mundo.
Gilberto Cunha – Pesquisador da Embrapa Trigo
Nas próximas décadas, o aceleramento projetado da mudança do clima global, em concomitância com ação humana local (mudança do uso da terra, acima de tudo) pode, sim, diferentemente dos 65 milhões de anos passados, trazer impactos que escapem do controle na Floresta Amazônica e afetar a sua decantada resiliência. As condições de secas vivenciada na região amazônica nos tempos passados, por exemplo, foram, em alguns aspectos, muito diferentes das atuais. No passado, secas sob condições de temperaturas baixas e menor concentração de CO2, implicando em menor demanda de água pelas árvores do que as atuais ou projetadas como vindouras, sob temperaturas elevadas e maior concentração e CO2. Em tese, o estresse térmico pode reduzir a produtividade das plantas e ampliar o estresse hídrico. A maior concentração de CO2 poderia acelerar a produtividade primária e o crescimento da floresta, por um lado, mas também, por outro, apressar a mortalidade das árvores, revertendo esse benefício. Não se pode ignorar os riscos da mudança do clima global e seus potenciais impactos no mundo.
Há muitas mudanças na Amazônia, especialmente a partir dos anos 1980. Estima-se que 17% da floresta tenha sido degrada por ações humanas, podendo chegar a 38%, quando são incluídas as secas extremas (naturais) das últimas décadas. No extremo sul da floresta, por exemplo, há maior emissão do que absorção de Carbono, devido a deflorestamento e incêndios, indicando a fragilidade do sistema, quando ações tomadas escampam do controle.
A preocupação maior, levantada pelos autores do referido artigo da revista Nature (Flores et al, 2024), é como não agravar (se possível parar) a situação de algumas transições críticas que ora estão em curso no bioma amazônico. Destaques: florestas degradadas, a partir de pastagens abandonadas manejadas com fogo, em que, na sucessão grassa o predomínio de espécies oportunistas, trepadeiras e bambus. Em áreas com menos de 1800 mm de chuva anualmente, há aumento de floresta aberta, tendo, como causa atribuída, desmatamento e incêndios, a exemplo do que ocorre no sul da Amazônia. Além do aumento, no interior da floresta, de áreas arenosas alagadas, repetidamente perturbadas pelo fogo dos indígenas, que, localmente, são chamadas de Campinas ou Campinaranas, um tipo de “cerrado” com espécies endêmicas herbáceas.
Os, potencialmente, principais atores que ameaçam a integridade da Amazônia e sua resiliência, ao longo do século XXI, envolvem tanto questões globais (não ultrapassar aquecimento de 1,5 ºC, por exemplo) quanto locais: que as chuvas na região não caiam abaixo de 1800 mm/ano (há locais na Amazônia que chove menos); que o déficit hídrico máximo não ultrapasse 350 mm; que a duração da estação seca não supere 5 meses; e que o deflorestamento acumulado do bioma original seja limitado a 10% (chega a 15% do bioma, exigindo 5% de florestamento). Essa é a sugestão deixada pelos autores do artigo da Nature, embora com nível de confiança variando de baixo a médio. Enfim, algo nada simples, como fazer o mundo reduzir as emissões de gases de efeito estufa e localmente parar o desmatamento ilegal e promover a recuperação das áreas degradadas, além de expandir as áreas sob proteção estatal.
Opinião
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