Na semana passada, fiz uma pesquisa instantânea, via aplicativo de mensagens, com a seguinte pergunta: “Veja a pergunta abaixo e responda sem consulta. A ideia não é ter o número correto, mas a percepção das pessoas sobre o assunto. Lá vai: “se, por mágica, o rebanho bovino brasileiro desaparecesse, quantos porcento você acha que reduziria na emissão mundial de gases de efeito estufa? (a) 1% (b) 5% (c) 30% (d) 45%”.
Muito importante frisar que esta pesquisa não tem qualquer rigor científico, foi feita apenas com 75 pessoas e o universo que elas representam nem de longe é um recorte representativo da sociedade brasileira. Por exemplo, praticamente todos os respondentes tinham nível superior ou cursam uma universidade. Trata-se, portanto, de um grupo com muito mais acesso à informação do que a média dos brasileiros.
O interessante é que, mesmo com todas as condições predisponentes para que o resultado fosse mais favorável à pecuária, ela escancara uma percepção distorcida da realidade. Vamos aos resultados:
Figura 1. Porcentagem de respondentes que escolheram cada uma das opções de redução nos gases de efeito estufa globais se o rebanho brasileiro de hoje não existisse. O número de respondente foi 75.
A surpresa maior foi ter o 1% como resposta mais frequente, pois era esperado que as demais opções fossem mais escolhidas, face às informações usuais da imprensa sobre o assunto, sempre apresentadas de forma impactante. Um fator que colaborou nesse viés é que quase um quarto dos respondentes tem nível superior em cursos de agrárias, o que, além de uma possível melhor interpretação dos dados, pode ter se somado a um eventual julgamento mais favorável, por simpatia ao setor.
Nessa mesma linha, o fato da pergunta ser de um pesquisador na área já criou a impressão da questão ser uma “pegadinha”, isto é, os dados mais alinhados com a informação corrente nos meios de imprensa estariam errados e os valores menores que deveriam estar certos. Enfim, quem pensou assim não votou com a sua legítima percepção. Isso não é apenas uma suposição deste autor, pois foi declarado por mais de um dos respondentes ter feito esse raciocínio para responder.
Todavia, apesar de 39% colocarem a resposta mais próxima ao valor correto, para cada pessoa que “acertou”, temos mais de 2,5 pessoas que acreditavam que seria bem mais do que isso. Quase ¼ das pessoas acreditam que o rebanho brasileiro poderia fazer uma diferença entre 30-45% a redução dos gases de efeito estufa (GEE) globais!
Qual o valor correto?
O rebanho brasileiro contribuiria com 0,65% das emissões globais¹ em CO2-eq.
Um ponto importante a ser destacado aqui, é que esse valor se refere única e exclusivamente, às emissões. Não está computada aqui nenhuma remoção que ocorra nos sistemas produtivos, o que muitas pessoas consideraram estar sendo incluído ao responder o 1%. O principal fator de remoção, no caso da pecuária, seria o carbono estocado no solo, pela degradação das raízes das forrageiras.
Outro fator importante é que a métrica usada para fazer os dados globais é o GWP100, que junta todos os GEE como se fossem CO2. O GWP100 representa o efeito no aquecimento climático de emissão de uma tonelada, em um pulso, pelo período de 100 anos de cada gás expresso em CO2-equivalente. Por definição, o GWP100 do CO2 é igual a 1, mas para metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), seria 28 e 256. Isso significa que o CH4 é 28 vezes mais potente em aquecer a atmosfera do que o CO2 e, o N2O, 256 vezes. Ocorre que a vida média do CH4 é menor do que 10 anos (variando e menos de 8 a 14 anos) e, ao igualar a 100 anos, seu efeito acaba superestimado.
Portanto, além do valor das emissões não terem descontadas as remoções, a métrica atualmente usada superestima a contribuição do metano. Uma medida alternativa proposta, que leva em conta a menor permanência do metano, o GWP*, mostrou que há uma redução de 35% menor para o valor entre 1981-2019.
Qual o impacto da “segunda sem carne”?
Portanto, mesmo com um valor superestimado pela métrica usual, e que não considera as remoções, qual seria o impacto da “segunda sem carne”?
Uma simplificação que é feita é que o consumo seria reduzido em 14,29% de carne, baseado na premissa que o consumo em cada dia da semana seria 1/7 do consumo total da semana. Nessa linha de premissas irrealistas, vamos assumir, também, que os consumidores da carne brasileira em todo o mundo reduzissem nessa mesma proporção. Ainda nessa linha de simplificar, digamos que, para tal, fosse reduzido 14,29% do rebanho. Se toda essa cadeia de eventos improváveis ocorresse, o impacto nas emissões de GEE globais seria menor de que 0,1%.
Não é difícil perceber, contudo, que o valor mais razoável de redução estaria próximo à zero. Primeiro porque, mesmo que houvesse uma participação muito grande, ela estaria restrita principalmente às classes mais privilegiadas da sociedade, ou seja, uma fração menor de pessoas.
Mesmo que o movimento causasse um impacto minimamente expressivo no consumo, o resultado imediato seria a queda no preço da carne, o que permitiria que muitas pessoas de mais baixo poder aquisitivo, pudessem comprar o produto, anulando o objetivo inicial. Ironicamente, talvez o lado bom da “segunda sem carne” seria “pelo menos carne na segunda” para muitos brasileiros.
É preciso entender que a entrega de menos 14% de carne, muito provavelmente não seria por redução do rebanho, mas por redução de intensificação produtiva, que leva à produção menos ambientalmente desejável. Isso fica bem demonstrado num excelente trabalho de pesquisadores brasileiros e escoceses. Ele mostra que o desincentivo à produção faria baixar a renda dos pecuaristas. Estes, por sua vez, ao investirem menos em sua produção, permitiriam uma perda de vigor das suas pastagens que, em última análise, perderiam carbono (C) do solo para a atmosfera, ou seja, o efeito seria o oposto ao desejado. Recomendamos a leitura de outro artigo desses mesmos pesquisadores cuja referência segue na nota de rodapé¹, e que tem a seguinte frase lapidar: “Boicotes bem-intencionados à carne debilitam potencialmente o incentivo a investir em restauração de pastagens e podem levar a um contraditório uso extensivo da terra e ao aumento de emissões de gases de efeito estufa (GEE)“.
O que seria melhor do que uma “segunda sem carne”?
Do ponto de vista do consumidor, uma das ações que ele pode fazer é se informar sobre as opções de compra e, quando possível, dar preferência às marcas que tenham algum diferencial, como garantia de origem ou alguma forma de compensação ambiental. As opções ainda são poucas, mas, para atender esse anseio do consumidor, elas devem aumentar nos anos vindouros.
Um aspecto interessante desse tipo de produto é que ainda há alguma resistência dos próprios produtores com relação a eles, uma vez que eles seriam uma admissão de culpa do setor com relação aos impactos ambientais. É preciso tirar essa pecha. A produção média de carne no Brasil como feita hoje é de baixo impacto ambiental e, de fato, há várias virtudes em ser pouco intensiva assim. O que existe, todavia, é que sistemas melhorados com práticas sustentáveis podem reduzir, particularmente, sua pegada de carbono, em linha com a necessidade de redução das concentrações de GEE e, ao mesmo tempo, produzindo mais eficientemente e com maior rentabilidade ao produtor.
Enquanto a pecuária pode ser uma solução para as mudanças climáticas colocando o C onde ele deve estar, com benefícios, o CO2 emitido pela queima dos combustíveis fósseis é, de fato, o grande vilão do aquecimento global. Sem surpresa, o setor de energia responde por 40% das emissões globais de GEE e o setor de transporte, 16%, ambos os dados em CO2-eq.
Assim, melhor do que uma “segunda sem carne” seria uma “segunda da carona solidária”, por exemplo, alternando com um colega de trabalho o percurso de carro. Nessa mesma linha, pode ser também a “segunda sem carro”, com a ida ao trabalho de bicicleta, a pé ou de ônibus. O benefício vai muito além da redução da pegada de C, pois melhora o ar das cidades e, no caso de bicicleta ou caminhada, a saúde da pessoa.
Outra opção interessante seria a “segunda com o regador”, para molhar a muda de árvore plantada no final de semana. Muito além da árvore apenas ajudar a zerar eventuais emissões líquidas de um sistema de produção, elas trazem inúmeros benefícios ao ambiente, desde criarem um microclima mais ameno, passando por ajudarem a manter a biodiversidade até o efeito do conjunto arborização no clima mesmo.
O que leva à percepção exagerada da pegada ambiental da carne?
O motivo da percepção exagerada das pessoas no peso da pecuária no aquecimento global ocorre porque nas matérias da imprensa sempre aparece que: (i) o Brasil é um dos principais emissores de GEE; (ii) que a agricultura é um dos principais setores que contribuem para isso e (iii) que as emissões de metano entérico correspondem à 70% das emissões do setor agricultura. Esse encadeamento de informações leva a entender que as emissões de metano brasileiras são muito relevantes no cômputo geral. A seguir, vejamos se isso se sustenta à luz da frieza dos números.
O peso do Brasil no mundo: De fato, o Brasil costuma figurar entre os dez maiores emissores, mas isto ocorre mesmo ele emitindo apenas 2,79% das emissões totais em CO2-eq. Isso é mais de oito vezes menor que o principal país poluidor, a China (23,4%), e quatro vezes menos do que o segundo maior, os EUA, que é responsável pela emissão de quase 12% dos GEE totais em CO2-eq.
O peso da agricultura no Brasil: O Brasil tem uma matriz energética muito menos dependente de combustíveis fósseis e outras fontes não renováveis do que a matriz energética mundial. Enquanto o Brasil tem 46% das fontes renováveis, a média mundial é de apenas 14%. Ao mesmo tempo, somos um dos países com a maior produção agropecuária do mundo. A combinação desses dois fatos faz com que a agricultura sobressaia, representando quase 30% das emissões brasileiras, mas sendo apenas 0,93% das emissões mundiais em CO2-eq.
O peso da pecuária bovina na agricultura do Brasil: Por fim, a contribuição do metano entérico, remete principalmente à pecuária bovina, e os 70% levam ao valor 0,65% das emissões mundiais em CO2-eq.
Importante lembrar que esse valor conta as emissões e não desconta as remoções, que em sistemas melhorados de produção em pastagem podem até superar a emissão. Igualmente necessário lembrar que se usa uma métrica, o GWP100, que superestima o papel das emissões de metano em, pelo menos, 35%.
Em resumo:
1) O Brasil, mesmo sendo um importante emissor, seria responsável por menos de 3% das emissões globais de GEE;
2) A pecuária bovina brasileira seria responsável por 0,65% das emissões em CO2-eq;
3) A “segunda-feira sem carne”, portanto, teria um potencial de menos de 0,1% em CO2-eq se fosse adotado por 100% dos consumidores de carne brasileira, inclusive a exportada para mais de 100 países, e caso houvesse uma redução proporcional do rebanho;
4) De forma realista, mesmo que o movimento tivesse algum sucesso, o resultado seria a queda no preço das carnes e o aumento do consumo;
5) Como demonstrado em um trabalho científico, o boicote ao consumo de carne pode aumentar a emissão de GEE pela perda de C dos solos das pastagens, pelo menor cuidado do produtor com elas em um cenário de consumo deprimido;
6) A percepção do público, em geral, acaba sendo distorcida pela forma como as notícias são usualmente apresentadas. Seria bom encorajar o uso de valores absolutos e a comparação do Brasil e de sua pecuária com os principais emissores.
Considerações finais
Efetivamente os dados mostram que a pecuária brasileira não pode ser considerada a vilã do aquecimento global e das mudanças climáticas, decorrentes do primeiro. Isso não quer dizer que a pecuária brasileira não deva participar, mesmo porque essa é a típica crise que se apresenta com uma grande oportunidade de mudança, com ganhos para todos os envolvidos.
Um mundo melhor não é um mundo sem produção de carne, mas um mundo com produção de carne sendo feita de forma sustentável, com bem-estar animal e sendo um bom negócio para o produtor.
¹ Para os respondentes, retornei à informação que seria 0,58%, pois usei dados mais antigos.
² SILVA, R.O., BARIONI, L.G., MORAN, D. Fire, deforestation, and livestock: When the smoke clears. Land Use and Policy, 100, 2020. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264837720302040
*Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.