ESG

Uso de campos de altitude na Mata Atlântica não é consenso em audiência

A utilização de áreas de vegetação nativa dos campos de altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica não é consenso entre especialistas que participaram nesta quinta-feira (24) de audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). Os senadores questionam se seria possível aumentar a ocupação agrossilvipastoril desse ecossistema — especialmente nos estados da Região Sul, nos chamados Campos de Cima da Serra — ou se isso significaria um retrocesso à preservação dos remanescentes desse ecossistema natural, rico em flora endêmica e muitas vezes rara.

A audiência — inicialmente requerida pelo senador Esperidião Amin (PP-SC) e por ele presidida — teve objetivo de instruir a análise do colegiado ao Projeto de Lei do Senado (PLS) 194/2018, da ex-senadora Ana Amélia, para quem a legislação atual (Lei 11.428, de 2006) é muito restritiva ao tratar os campos de altitude com os mesmos rigores das formações florestais da Mata Atlântica.

Relator da matéria, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) deu parecer pela rejeição da proposta, que ele considera “um projeto de regularização e indulto ambiental, extremamente perigoso”. Segundo o parlamentar, o PL apresenta problemas e incongruências que levam a sua não implementação.

Entre os principais problemas do projeto, segundo Jean Paul, está a ampliação do conceito do bioma, inclusive para efeito de ocupação de áreas urbanas. O projeto também traz a criação de definições técnicas específicas, ao redefinir conceitos genéricos que já existem na legislação ambiental, como interesse social, produtor rural e utilidade pública, o que causaria confusões. 

” Por fim, esse projeto se “autoanula”, com a previsão no artigo 5º de que a vegetação primária ou secundária em qualquer estágio de regeneração dos campos de altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica perdem essa classificação nos casos de incêndio, desmatamento ou qualquer outro tipo de intervenção não autorizada ou não licenciada ocorridos há mais de cinco anos”, pontuou o relator.

Jean Paul informou, porém, que vai reanalisar o parecer considerando as discussões da audiência, o que não exclui por completo a posição pela rejeição, mas indica que ainda há possibilidade de aprimoramento do texto.

“O tema é controverso. O senador Jean Paul Prates vai estudar o assunto e essa atitude, junto com a qualidade das apresentações, reforça a minha crença no Parlamento e na busca de um entendimento, num mundo tão conflituoso”, expôs o senador Amin, requerente da audiência.

Convergência

Os professores João de Deus Medeiros, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Adelar Mantovani, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc); e Valério de Patta Pillar, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), convergiram pela rejeição do projeto.

Medeiros destacou que as áreas de campos de altitude se caracterizam como refúgios, abrigando um número significativo de espécies endêmicas e espécies raras. Afirmou ainda serem pouco propícias às atividades agropastoris, com temperaturas baixas e geadas intensas.

Para o professor da UFSC, o ponto mais crítico do projeto é flexibilizar para a ocupação de áreas urbanas, o que fere completamente as disposições da Mata Atlântica.

Também representante de Santa Catarina, o professor Mantovani demonstrou preocupação com as áreas ocupadas por banhados, que apontam a capacidade de armazenamento de águas nestas regiões. Ele destacou a fragilidade desses locais sob o ponto de vista da pressão para ampliação das áreas úteis para as atividades agropecuárias.

“As questões de fiscalização e liberação ambiental são poucas robustas. (…) Provoco esta plenária para que tenhamos um inventário florístico campestre, para estudarmos com mais profundidades essas áreas, destinando também uma função econômica para essas regiões.”, destacou Mantovani.

Representando o Rio Grande do Sul, o professor Pillar apontou que uma parte significativa dos campos de altitude já foi convertida.

Dados de 2020, segundo Pillar, mostram que há apenas 870 mil hectares remanescentes de campos nativos nos três estados sulistas. Outros 420 mil hectares estão destinados à silvicultura, e 2,6 milhões de hectares, à agricultura e à pastagem.

O atual projeto de lei, segundo o professor da UFRGS, possibilitaria licenciamento de atividades agrossilvopastoris em áreas nunca ocupadas, o que é preocupante.

Divergência

Chefe-adjunta de Pesquisa e Desenvolvimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa/Campinas), Lucíola Alves Magalhães destacou que a antropização (ação do homem no meio ambiente) dos Campos de Cima da Serra é uma das mais antigas do Brasil.

A região tornou-se a maior produtora de maçã do país e consolidou-se na produção de hortaliças, uva, milho, soja e outros produtos. Apesar disso, segundo Lucíola, a pobreza rural segue sendo um dos maiores desafios locais.

Pelo menos 72,3% dos imóveis rurais da região têm até 10 salários mínimos de renda bruta. Em fevereiro de 2018, havia cerca de 50 mil imóveis ocupando 1,5 milhão de hectares, representando cerca de 60% do território dos Campos de Cima da Serra.

De acordo com a representante da Embrapa, 35% da área cadastrada é destinada à preservação da vegetação nativa, muito acima dos 20% geralmente destinados a esse fim.

“Os produtores rurais não recebem nenhuma compensação ou reconhecimento do estado ou órgãos públicos por esse patrimônio privado pessoal aplicado à preservação ambiental, nem pelos custos que acarreta a manutenção dessas áreas. Esforço também desconhecido nos centros urbanos”, disse.

Assessor da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Marcelo Camardelli também enfatizou que a  área agricultável é significativamente menor do que as áreas protegidas. Ele ressaltou ainda que a produção local abastece grande parte da região metropolitana dos estados sulistas.

” Diversas unidades de conservação estão inseridas nessa região, demonstrando que o produtor conserva, sim”, defendeu.

Judicializações

As recorrentes judicializações acerca da Lei do Código Florestal e as dificuldades para sua implantação, assim como as restrições impostas pela Lei da Mata Atlântica, demonstram que o atual projeto de lei não ajudará a sanar os entraves entre o produtor rural e a insegurança jurídica. Essa é a opinião do consultor jurídico e ambiental da Confederação Nacional da Agricultura, Rodrigo Justus, e do consultor da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Leonardo Papp.

“Temos um problema sério que é o não reconhecimento do Código Florestal em relação à Mata Atlântica. O PL 194 não resolve esse problema. Pontos de estrangulamento nessa lei continuam presentes no atual projeto”, afirmou Justus.

Papp pontuou que há um risco muito grande em se aprofundar o processo legislativo nesse atual contexto de insegurança jurídica. Para ele, a efetiva aplicação do Código Florestal resolveria também a questão nos campos de altitude.

” A questão é que o Código completa 10 anos e há ainda uma série de dificuldades para sua implantação. Está basicamente relacionado a sua excessiva judicialização, mesmo com o Supremo Tribunal Federal afirmando a constitucionalidade dessa lei”, avalia.

Fonte: Agência Senado