Leite

É preciso cuidar das vacas para ter boas bezerras

A ocorrência de doenças afeta significativamente a viabilidade econômica das operações leiteiras, devido aos custos associados às taxas de mortalidade e também morbidade.

Muitas fazendas tem protocolos bastante adequados de colostragem, alimentação e manejo sanitário de bezerras, mas ainda assim observam alguns problemas seja nos resultados de transferência de imunidade passiva, seja no desempenho geral dos animais. Essas observações sugerem que os cuidados com as bezerras começam ainda antes de seu nascimento, ou seja, durante o período de gestação.

Durante a fase inicial da vida, a ocorrência de doenças afeta significativamente a viabilidade econômica das operações leiteiras, devido aos custos associados às taxas de mortalidade e também morbidade, além dos efeitos de longo prazo no desempenho. Os riscos de morbidade e mortalidade antes do desaleitamento das bezerras foram relatados como altos (cerca de 23–35% de morbidade e 3,5–10,5% de mortalidade) em vários países, incluindo os Estados Unidos, Canadá e Austrália. A maior parte das mortes podem ser explicadas por doenças infecciosas como diarreia (56,5%) e pneumonia (22,5%), resultando em grandes perdas econômicas em sistemas de produção no mundo todo.

Um dos principais fatores que contribuem para essa alta incidência da doença no estágio neonatal é a incapacidade dos bezerros de criar uma resposta imune eficaz. Os bezerros nascem com um sistema imunológico inexperiente e imaturo, dependendo da transferência de imunidade passiva para proteção contra patógenos.

sistema imunológico do bezerro, no entanto, começa a se desenvolver no útero logo aos 42 dias de gestação e pode, portanto, ser afetado por condições maternas durante a gestação. Além disso, acredita-se que o sistema imunológico tenha menor prioridade na partição de nutrientes fetais do que outros sistemas. Portanto, o sistema imunológico e, portanto, a sua capacidade de lutar contra doenças infecciosas após o nascimento e durante os primeiros dias de vida é um dos primeiros sistemas afetados quando o fornecimento de nutrientes ao feto é limitado.

A programação fetal refere-se ao conceito de que os fatores que afetam o crescimento e o desenvolvimento fetal causam mudanças de longo prazo na estrutura e função do tecido, ou em ambos. Este conceito foi estabelecido pela primeira vez usando estudos epidemiológicos para mostrar uma forte associação entre características fenotípicas adversas (por exemplo, síndrome metabólica, alterações de crescimento e disfunção imune e reprodutiva) e exposição no útero a vários agentes estressores. Posteriormente, foi demonstrado em estudos com humanos e animais que todos os sistemas orgânicos e funções metabólicas podem ser afetados pela programação do desenvolvimento, ou seja, ainda durante a gestação.

A depender do momento e duração dos agentes estressores haverá um determinado efeito e magnitude deste efeito. Desta forma, existem janelas de suscetibilidade a estressores longo da gestação: logo após a concepção, início, meio e fim da gestação.

Aparentemente os maiores efeitos de programação fetal em bezerros leiteiros está associado a efeitos no terço final de gestação, exatamente o período em que ocorre a maior parte do crescimento do feto e proliferação mais rápida de células do sistema imunológico.

A adipogênese (síntese de gordura) é outro processo que, embora iniciado no meio da gestação, ocorre em maior extensão no final da gestação e é suscetível à programação do desenvolvimento. Embora esta fase pareça ser bastante importante, fatores que afetam o desenvolvimento do feto no início e meio da gestação também podem influenciar o futuro produtivo do animal de maneira importante.

Por exemplo, o número de células na fibra muscular é estabelecido no meio da gestação, mas agentes estressores no final da gestação afetam seu tamanho e a formação de adipócitos (células de gordura) intramuscular, mas não altera o número de miócitos nas fibras musculares. Da mesma forma, a massa hepática é definida durante o início da gestação sob o controle de muitos genes que são sensíveis à regulação nutricional e hormonal no útero, enquanto a regulação da maturação hepática ocorre durante o final da gestação. Portanto, variações na disponibilidade de nutrientes para o feto podem resultar em mudanças duradouras na estrutura e função dos principais tecidos fetais relacionados ao metabolismo, crescimento e saúde.

A revisão de Abuelo (2020) discute os efeitos de diferentes fatores nutricionais e metabólicos maternos durante o final da gestação sobre o crescimento, produtividade, metabolismo e saúde da bezerra, incluindo intervenções na mãe que resultam na melhoria da saúde neonatal.

Neste texto abordaremos os principais conceitos sobre programação fetal descritos pelo autor.
 

Visão geral da programação fetal

A exposição do feto a diferentes eventos estressores durante períodos críticos de desenvolvimento pode levar a adaptações que se mostram prejudiciais e associadas a problemas em animais adultos. Em humanos, é reconhecido que uma ampla gama de eventos gestacionais pode alterar a trajetória de desenvolvimento fetal e posteriormente da criança. Estes incluem, entre outros, déficit ou excesso nutricional materno, ocorrência de doenças, condições ambientais e exposição a compostos tóxicos, todos também relevantes quando se pensa em gado leiteiro.

A programação fetal pode ocorrer por meio de vários mecanismos. Dependendo do tipo de evento, do sistema de órgãos afetado e do momento no desenvolvimento em que o evento ocorre, vários mecanismos foram propostos ligando esses insultos a resultados desfavoráveis, como menor capacidade de sobrevivência. No entanto, diferentes eventos podem levar a respostas nos bezerros que convergem rotas comuns, culminando no desenvolvimento de resultados semelhantes quando o animal se torna adulto.

Um desses mecanismos se dá por meio de alterações na placenta. Após a implantação, a placenta controla a troca de substâncias entre a mãe e o feto, e qualquer fator capaz de afetar a placenta pode levar a alterações no crescimento fetal e no desenvolvimento de órgãos. Exemplos são as alterações no fluxo sanguíneo para a placenta e mudanças no transportador o que altera a permeabilidade e a função da placenta. Em casos de subnutrição, o transporte de nutrientes para o feto pode ser reduzido, enquanto que em supernutrição o oposto ocorre, resultando em mudanças na disponibilidade de nutrientes (por exemplo, glicose, ácidos graxos, AA) para o feto que podem afetar o crescimento e desenvolvimento de tecidos fetais.

Além das mudanças na função placentária, as alterações no crescimento e desenvolvimento dos tecidos fetais podem levar a mudanças irreversíveis no tecido e na estrutura do órgão, bem como mudanças permanentes na função do tecido, como expressão gênica. As alterações na expressão gênica são as chamadas alterações epigenéticas.

Estas, são mudanças hereditárias transgeracionais na expressão gênica sem alteração do código genético e definem se este gene está disponível para transcrição ou não. Existe ampla evidência de vários fatores maternos que afetam o epigenoma fetal, incluindo a nutrição e estado metabólico, compostos tóxicos (por exemplo, pesticidas ou herbicidas), interações sociais e estressores ambientais, como calor. Assim, práticas como adequada nutrição de vacas em final de gestação (fim de lactação e vacas pré-parto), manutenção de adequado escore de condição corporal (vacas nem magras e nem gordas), manejo de lotes (separar vacas e novilhas no período seco por exemplo) e estratégias de resfriamento no pré-parto devem ser aplicadas para evitar que ocorra programação fetal com resultados negativos para o feto que está sendo gerado e consequentemente para o sistema de produção.
 

Efeito da nutrição materna

O estado nutricional materno durante a gestação é um fator importante nos eventos da programação do desenvolvimento e, consequentemente nos resultados da bezerra. A nutrição materna pode alterar o epigenoma e o transcriptoma fetal e pós-natal, muitas vezes levando a alterações mensuráveis no metabolismo e no crescimento.

Além disso, a função placentária é alterada para combinar o crescimento fetal com o suprimento materno de nutrientes (restrição ou excesso) para o feto. Assim, a depender da nutrição da vaca, alterações placentárias ocorrem, alterando também a disponibilidade de nutrientes para o feto, o que impacta o crescimento fetal e em longo prazo saúde da bezerra.
 

Subnutrição Materna

Em bovinos, provavelmente os melhores exemplos do efeito da desnutrição materna durante a gestação são defeitos congênitos em bezerros. No entanto, o suprimento materno de nutrientes abaixo das necessidades também está associado à diminuição do crescimento pré e pós-natal, respostas imunológicas alteradas e aumento dos riscos de morbidade e mortalidade, não apenas durante o estágio neonatal, mas também durante a vida produtiva. Mesmo as restrições de curto prazo têm implicações de longo prazo. Por exemplo em bezerros de corte nascidos de vacas alimentadas com dieta restrita apresentaram respostas humorais diminuídas à vacinação 10 meses após o nascimento.

Em vacas leiteiras, a sobrevivência à segunda parição e a produção de leite foram reduzidas, e a CCS foi aumentada, nas filhas de mães com maior produção de leite antes da concepção e durante a gestação.

Em fazendas leiteiras, as vacas prenhes estão em lactação durante a maior parte da gestação, o que significa que o feto compete por nutrientes com as necessidades para a produção de leite – com vacas produzindo mais leite provavelmente fornecendo menos nutrientes ao feto. Novilhas nascidas de mães que estavam em lactação durante a gestação produziram 53 kg a menos de leite, viveram 16 dias menos e foram metabolicamente menos eficientes do que aquelas nascidas de mães que não estavam em gestação e lactação. Além disso, a redução na capacidade de sobrevivência e eficiência metabólica da bezerra, assim como a produção de leite quando se tornaram vacas, foi mais marcante de acordo com o nível de produção de leite da vaca.

Assim, bezerros nascidos de vacas mais produtivas podem ser impedidos de expressar totalmente seu mérito genético.

Apesar desses efeitos potenciais sobre a bezerra, manter menores intervalos entre partos é fundamental para garantir a eficiência econômica da fazenda leiteira. Portanto, garantir a nutrição adequada das vacas em lactação é fundamental para evitar os efeitos negativos da disponibilidade reduzida de nutrientes durante a gestação sobre a saúde e a produtividade da bezerra.

Felizmente, na maioria das fazendas leiteiras modernas, as vacas secas são alimentadas com ração total projetada para atender às necessidades dietéticas. No entanto, é importante considerar que outros fatores sociais e ambientais que podem afetar a ingestão de alimentos podem afetar o desenvolvimento fetal. Por exemplo, fatores de manejo, como alta densidade animal, resfriamento inadequado ou estado de saúde (por exemplo, claudicação) que resultam em diminuição da ingestão de ração no final do período de seca, não afetarão apenas a vaca no início da lactação, mas também potencialmente terão um efeito negativo sobre o desenvolvimento da bezerra.
 

Supernutrição Materna

Em fazendas leiteiras comerciais, é mais comum encontrar vacas supercondicionadas na secagem do que subcondicionadas. Assim, os efeitos decorrentes de supernutrição são os mais observados em gado leiteiro.

Em humanos, a obesidade materna foi associada ao aumento da adiposidade e à diabetes tipo 2, pressão alta e outros problemas em crianças. A síndrome metabólica em humanos tem muitas semelhanças com a síndrome da vaca gorda e, portanto, é provável que relações semelhantes entre vacas gestantes supercondicionadas e risco aumentado de doença metabólica na bezerra também existam em vacas leiteiras.

O efeito da supernutrição materna na programação fetal em bovinos não foi tão extensivamente estudado quanto a subnutrição. No entanto, há evidências de sua existência em bovinos de corte, onde a supernutrição materna durante a gestação resultou em aumento da expressão de mRNA da adipogênese intramuscular e deposição de colágeno no músculo esquelético. Portanto, a supernutrição no final da gestação afeta plausivelmente a estrutura do tecido em bezerros leiteiros. Vacas leiteiras com alto ECC no período de secagem têm maior probabilidade de perder ECC durante o final da gestação, enquanto vacas com baixo ECC no período de secagem provavelmente ganharão ECC no período seco.

Mudanças na composição corporal durante o final da gestação podem afetar negativamente o desenvolvimento do bezerro. No entanto, mais pesquisas são necessárias para elucidar e quantificar o efeito da supernutrição materna e da adiposidade durante a gestação no crescimento dos bezerros leiteiros e resultados de saúde.
 

Balanço cátion-aniônico da dieta

Vacas leiteiras geralmente são alimentadas com dietas com diferença cátion-aniônica (DCA) negativa durante as últimas semanas de gestação como uma estratégia para prevenir a hipocalcemia clínica, com efeitos também na redução de ocorrência de retenção de placenta e metrite. As dietas com DCA negativo visam criar uma acidose metabólica compensada nas vacas, o que diminui o pH do sangue e ativa diferentes mecanismos homeostáticos que resultam no aumento da mobilização e absorção de Ca.

No entanto, é possível que esta acidose metabólica materna induzida por dietas pré-parto DCA negativas também possa acidificar o sangue dos bezerros no útero, por causa do sistema de transferência de nutrientes altamente vascularizado que ocorre durante o último trimestre. A acidose metabólica e respiratória em bezerros recém-nascidos tem sido associada à redução da eficiência da absorção de IgG no colostro, levando ao aumento do risco de mortalidade em bezerros leiteiros. Portanto, foi inicialmente formulada a hipótese de que alimentar as mães com DCA negativo poderia ter implicações negativas no futuro para a saúde e o desenvolvimento pós-natal dos bezerros.

Alguns estudos anteriores relataram diminuição na absorção de IgG em bezerros nascidos de mães alimentadas com dietas acidogênicas. No entanto, resultados contraditórios foram encontrados em estudos controlados mais recentes. Por exemplo, a eficiência de absorção de IgG e as concentrações de Ig foram semelhantes entre bezerros cujas mães receberam uma dieta com DCA de -100 mEq / kg e aqueles nascidos de mães alimentadas com DCA de +77 mEq / kg durante os últimos 21 dias pré-parto.

Coletivamente, os dados de diversos estudos indicam que as mudanças no equilíbrio ácido-base observadas no nascimento em bezerros cujas mães receberam dieta DCA negativa no pré-parto são de natureza transitória e não afetam a transferência passiva de imunidade, risco de doença ou crescimento.
 

Composição e volume do colostro

Além dos efeitos in utero, a nutrição durante o final da gestação também pode afetar o desenvolvimento e a imunidade dos bezerros por meio de alterações na produção de colostro. A ingestão de colostro é crítica não apenas para a transferência de imunidade passiva e resistência a doenças, mas também para outras implicações de longo prazo, como maior eficiência alimentar, idade reduzida ao primeiro parto e maior produção de leite nas primeiras lactações. A colostrogênese ocorre durante as últimas semanas antes do parto e, portanto, é condicionada pelo estado da vaca durante este período.

Vários fatores afetam a concentração de Ig no colostro, incluindo, a duração do período seco, o tempo do parto à ordenha, o estado de vacinação da mãe, a paridade, a nutrição no final da gestação e a estação do parto.

É importante destacar como a nutrição materna pode influenciar o desenvolvimento e a imunidade dos bezerros por meio de alterações na composição do colostro. Aproximadamente 19,7% dos bezerros nos Estados Unidos recebem colostro proveniente de várias vacas que foi misturado formando um pool, o que pode potencialmente compensar a produção de colostro insuficiente ou de baixa qualidade por vacas individuais. No entanto, os fatores do rebanho que influenciam a composição do colostro ainda são relevantes.

A concentração de PB na dieta seca não foi associada à concentração de IgG no colostro. Por outro lado, a absorção de IgG foi reduzida em 21,8% em bezerros que receberam colostro obtido de vacas alimentadas com quantidades restritas de energia e PB. Por outro lado, vacas alimentadas com excesso de energia tiveram menores concentrações de IgG no colostro, mas maiores concentrações de insulina e de concentração de ácidos graxos. O fornecimento de hormônios e fatores de crescimento através do colostro afetam a maturação do trato gastrointestinal neonatal. No entanto, ainda são necessárias pesquisas para quantificar o efeito das diferenças nos componentes do colostro causadas por diferentes estratégias de alimentação no período de seca sobre a maturação intestinal, metabolismo e crescimento do bezerro recém-nascido.

Outro fator importante a se considerar é o volume de colostro produzido. As fazendas precisam coletar colostro de qualidade suficiente para garantir protocolo de colostragem ideal. No entanto, a produção de colostro tem sido tradicionalmente associada negativamente à concentração de Ig.

Além disso, vários rebanhos leiteiros relataram deficiência na produção de colostro pelas vacas durante o outono e o inverno, o que limita a capacidade das fazendas de fornecer colostro de alta qualidade suficiente para todos os bezerros.

Infelizmente, não existem muitas evidências sobre os fatores que influenciam o volume de colostro produzido por vacas leiteiras.

Um estudo mostrou não haver diferenças estatísticas no volume de colostro entre os diferentes planos dietéticos. Além disso, vacas com glândulas mamárias infectadas persistentemente produziram menos colostro do que animais saudáveis. Coletivamente, esses dados sugerem que a nutrição materna pré-parto pode afetar a produção de colostro.

Claramente, a relação entre dieta pré-parto, composição e produção do colostro e saúde e desenvolvimento do bezerro merece investigação adicional.


Considerações

Existem evidências substanciais em gado leiteiro que apoiam os efeitos de eventos estressores maternos no final da gestação ou outras intervenções que, quando impostas à mãe, afetam o desenvolvimento neonatal, a saúde e a produção ao longo da vida.

Aumentar nossa compreensão dos mecanismos da programação fetal levará a programas de manejo de vacas secas com o objetivo de melhorar não apenas a saúde da vaca no início da lactação, mas também o crescimento e a imunidade dos bezerros neonatais.

No próximo mês vamos tratar de um dos eventos estressores que altera a programação fetal, resultando em grande impacto na sobrevivência, saúde e desempenho de bezerras leiteiras: estresse térmico no pré-parto. Fique atento!

Fonte: MilkPoint