Produzir leite com alta qualidade é um desafio, mas também uma grande oportunidade, pois afeta diretamente a produtividade, rentabilidade e competividade de todo o setor
Por Marcos Veiga*
Produzir leite com alta qualidade é um desafio, mas também uma grande oportunidade para o agronegócio do leite, pois é um dos fatores que afeta diretamente a produtividade, a rentabilidade e a competividade de todo o setor. Dentre os diferentes aspectos de avaliação da qualidade do leite, a contagem de células somáticas (CCS) é um dos principais. No mundo todo, a CCS é um dos indicadores mais usados para o monitoramento da mastite subclínica nos rebanhos leiteiros. Fazendas com alta CCS produzem leite com alterações da composição, o que reduz o rendimento de fabricação de derivados e a vida de prateleira dos produtos lácteos. Dentro da fazenda, as vacas com alta CCS produzem menos leite do que as vacas sadias, o que, associado aos maiores custos de tratamento, necessidade de medidas de controle da doença e maior risco de descarte prematuro das vacas infectadas, resulta em menor lucratividade das fazendas. Para exemplificar, vacas com alta CCS produzem de 1 a 3 kg/dia (primíparas e multíparas, respectivamente) menos leite que vacas sadias.
Estudo recente da equipe do Qualileite (FMVZ/USP) , em parceria com o EDUCAMPO SEBRAE, avaliou os principais indicadores econômicos (receita, margem bruta e lucro), de acordo com a CCS média, de um conjunto de 543 fazendas leiteiras, em cinco diferentes regiões do estado de Minas Gerais, ao longo de três anos. O grupo de fazendas avaliadas apresentou média de 82 vacas em lactação e produção variando de 15,1 a 20,5 kg/vaca/dia. A maioria dos rebanhos (94,6%) apresentou CCS do tanque > 200 mil células/mL; 37,8 % teve CCS entre 200 e 400; 14,5% teve CCS entre 400 e 500; 25% teve CCS entre 500 e 750 e 17,3% teve CCS > 750.
A margem bruta média/ano das fazendas, por vaca em lactação, foi de $ 678 dólares (R$ 3593,40; 1 US$ = R$ 5,30) e o lucro por vaca foi de $ 227 (R$ 1203,10), quando a CCS do tanque foi < 200 mil células/mL (Gráfico 1). Assim, uma fazenda com 100 vacas em lactação e que produziu leite com CCS < 200.000 células/ml teve margem bruta anual de R$ 359.340,00, sendo 33,5% de lucro (R$ 120.310,00).
Por outro lado, fazendas com CCS média de 500 mil células/mL apresentaram indicadores econômicos e de produção de leite significativamente menores, visto que o lucro observado foi de US$ 3,8 (R$ 20) vaca/ano. O impacto sobre a lucratividade foi ainda maior para as fazendas com média de CCS do tanque > 700 mil células/mL, as quais apresentaram indicadores econômicos negativos. Ainda foi possível observar, pela análise estatística, que fazendas com menos de 40 vacas em lactação (e com vacas de baixa produção, média < 15 L/d) tiveram menor receita, margem bruta e lucro, comparadas às com rebanhos com mais de 40 vacas em lactação.
Deve-se destacar que os resultados foram baseados em estudo de associação entre CCS média do tanque e indicadores econômicos das fazendas, o que significa que não é possível estabelecer relação direta de causa e efeito. No entanto, considerando essa ressalva, os resultados indicam que a redução da produção de leite e os demais prejuízos associados à alta CCS do tanque afetam negativamente a lucratividade das fazendas estudadas.
SITUAÇÃO DA MASTITE NO BRASIL
Conhecer a atual situação da qualidade do leite no Brasil e nas fazendas é uma etapa essencial para identificar os pontos fortes, as fraquezas, as oportunidades e as ameaças para a competitividade do leite brasileiro. Essas informações podem também ajudar na avaliação das diferentes iniciativas feitas nos últimos anos, por várias entidades e segmentos da cadeia produtiva do leite, como o Programa Leite Mais Saudável, entre outros.
Além disso, um bom diagnóstico de situação também permite identificar as áreas críticas e oportunidades de melhorias, as quais devem estar no radar dos produtores, técnicos e indústrias. Contudo, o conhecimento mais detalhado da situação atual da qualidade do leite no Brasil e, em particular, da mastite bovina, é sempre um desafio, em razão do restrito acesso aos dados detalhados de CCS do tanque das fazendas ou por falta de dados sobre o perfil de agentes causadores.
Os dados mais recentes disponíveis sobre a CCS média do tanque Brasil são representativos de cerca de 237 mil rebanhos leiteiros, monitorados por cerca de 1000 laticínios com inspeção SIF, em 2018. A média de CCS de tanque das fazendas leiteiras do Brasil tem se mantido estável ao longo dos últimos anos, com valores próximos ao limite máximo estabelecido pela atual legislação (Gráficos 2 e 3; Anuário dos Programas de Controle de Alimentos de Origem Animal do DIPOA VOLUME 5 – 2019). Esses resultados indicam que, a despeito das iniciativas e da implantação de programas de melhoria, a qualidade média do leite, no quesito CCS, tem permanecido a mesma ao longo dos últimos anos, o que pode sugerir falta de percepção do produtor sobre os benefícios e oportunidades da melhoria da qualidade do leite, assim como indica a necessidade de maiores incentivos via programas de pagamento e capacitação, associados à maior fiscalização.
Com relação ao perfil de agentes causadores de mastite, o significativo crescimento dos sistemas de cultura na fazenda, como o sistema OnFarm – startup brasileira que desenvolveu um sistema para diagnóstico do agente causador, em 24h, na própria fazenda – tem permitido a construção de bancos de dados mais robustos, que podem ser usados para melhorar a análise da situação atual das principais causas da mastite.
Conceitualmente, a mastite é uma inflamação da glândula mamária, geralmente causada por infecções bacterianas. Sendo assim, conhecer os agentes causadores da mastite é etapa essencial para as fazendas, pois é indispensável para a definição das medidas de controle mais adequadas e as melhores decisões de tratamento de mastite clínica.
O sistema de cultura na fazenda é baseado na identificação da causa da mastite na própria fazenda, por meio do uso de meios de cultura específicos, que permitem a identificação dos microrganismos pelas características de coloração das colônias.
CONHECENDO AS PRINCIPAIS CAUSAS DA MASTITE
Com base no banco de dados da OnFarm, durante o período de 2019 a agosto/2021, foram monitorados casos de mastite clínica e subclínica do total de 1823 fazendas leiteiras, distribuídas em 22 estados do Brasil. Desse total de fazendas, 53% estavam localizadas na região Sudeste, 35% na região Sul, 9% na região Centro-Oeste e 4% na região Norte/Nordeste (Gráfico 4). Esse conjunto de fazendas avaliadas tem boa representatividade dos principais sistemas especializados em produção de leite.
Com base na amostragem de 460 fazendas, cerca de 35% tinham o alojamento das vacas em sistema de Compost Barn,32% em sistema semi-confinado, 15% em confinamento tipo Free-stall, 13% em pastejo e 5% em outros sistemas (Gráfico 5). Considerando os dados agregados entre 2019 e agosto/2021, foram analisadas 209 mil amostras, sendo que 117 mil foram de casos de mastite clínica (56%) e 92 mil amostras de mastite subclínica (44%).
Com relação ao escore de gravidade dos casos de mastite clínica, 59% foram classificados como leves (quando somente há alterações no leite), enquanto 34% foram casos moderados (quando há alterações no leite e inchaço no quarto afetado) e 7% foram casos graves (quando ocorrem sintomas sistêmicos, entre os quais: perda de apetite, febre e desidratação.(Gráfico 6). Esses dados indicam que cerca de 93% dos casos de mastite clínica são leves e moderados, o que permite ao produtor aguardar 24 horas para realizar o teste de cultura na fazenda e, com base nos resultados da cultura, decidir sobre o melhor protocolo de tratamento a ser usado e a necessidade de uso, ou não, de antimicrobianos. Por outro lado, as vacas com casos graves de mastite clínica devem ser tratadas com protocolo adequado, imediatamente após o diagnóstico, pois correm risco de piora dos sintomas e, até mesmo, morte.
É interessante notar que, entre as causas de mastite clínica grave, cerca de 40% são de bactérias Gram-positivas, o que indica que não é possível associar as características dos sintomas da mastite clínica com o tipo de agente causador da mastite (Gráfico 7).
Do total de amostras de mastite clínica, não houve crescimento de microrganismos (resultado negativo) em 39,5% das amostras, enquanto 11,5% apresentaram crescimento de bactérias Gram-negativas, 42,7%de bactérias Gram-positivas e 1,6% de Prototheca/levedura.O nível de contaminação foi de 4,7%, o que sugere que essa metodologia, a despeito de ser usada nas condições e no ambiente da fazenda, apresenta boa segurança dos resultados, pois, quando ocorre contaminação durante a coleta ou nos procedimentos de inoculação da amostra, os resultados podem ser facilmente percebidos pelo crescimento de mais de dois tipos de microrganismos na amostra (Gráfico 8).
Por outro lado, a ocorrência de 39,5% de amostras negativas (sem crescimento microbiológico) pode indicar que a vaca afetada foi capaz de eliminar a infecção antes da manifestação clínica, o que é conhecido como cura espontânea. Essa situação ocorre, pois, alguns grupos de bactérias, especialmente as Gram-negativas, como a Escherichia coli, podem ser eliminadas pelo sistema imune, nos casos leves e moderados. Além disso, outras razões para a ocorrência de resultados negativos é a presença de baixo número de bactérias na amostra de leite ou o não crescimento do microrganismo nos meios de cultura cromogênicos, por necessitarem de condições de incubação especiais, como o Mycoplasma bovis.
Quando excluídos os casos de mastite clínica grave (7%), o restante (93%) é composto por casos leves e moderados, dos quais os resultados agregados de amostras negativas e de bactérias Gram-negativas totalizaram cerca de 51%. Diferentes estudos científicos indicam que vacas com mastite clínica leve e moderada, com resultados de cultura negativos ou de bactérias Gram-negativas, não necessitam de tratamento com antibiótico imediatamente, pois a cura espontânea, nesses casos, é elevada, variando de 85 a 95%.
Por outro lado, vacas com mastite clínica causada por bactérias Gram-positivas necessitam de tratamento com antibióticos, cujo protocolo pode ser ajustado com relação à duração do tratamento, de acordo com o tipo de microrganismo identificado.
Quando se considera somente as amostras de mastite clínica com resultados positivos (excluindo-se as amostras negativas e as contaminações), foi verificado que os agentes mais frequentemente isolados foram Streptococcus agalactiae/dysgalactiae, Staphylococcus não-aureus e Streptococcus uberis. Com relação às bactérias Gram-negativas, Escherichia coli é o principal agente causador de mastite clínica (Gráfico 9).
Com relação à mastite subclínica, do total de cerca de 93 mil amostras, os agentes mais isolados foram Staphylococcus não-aureus e Streptococcus agalactiae/dysgalactiae, enquanto as bactérias Gram-negativas foram pouco representativas. Um dos principais agentes causadores de mastite contagiosa, Staphylococcus aureus, foi isolado em 6,5% das amostras (Gráfico 10).
A avaliação geral dos resultados de prevalência das principais causas de mastite subclínica, em conjunto com os dados médios de CCS do tanque previamente apresentados, indica a necessidade de melhoria de controle de mastite contagiosa, principalmente de Streptococcus agalactiae, cujo controle depende de programas baseados em testar, tratar e testar novamente, em associação às outras medidas de melhoria de rotina na ordenha, tratamento de vaca seca e descarte e segregação das vacas com mastite crônica. Por outro lado, os resultados de cultura na fazenda de amostras de mastite clínica indicam grande potencial de benefícios com a implantação de protocolos de tratamento seletivo, o que permite para as fazendas redução de custos de descarte do leite, uso mais racional de antibióticos e melhoria da qualidade do leite.
*Professor Titular – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia Universidade de São Paulo |Qualileite – Laboratório de Pesquisa em Qualidade do Leite