Apesar do ceticismo de muita gente e de enormes gargalos a serem superados, o sonho de boa parte do Brasil em se conectar comercialmente com o mundo de forma eficiente via Oceano Pacífico está mais perto da realidade do que nunca. Chamado de “Corredor Bioceânico”, “Rodovia Bioceânica”, “Corredor Capricórnio” ou “Rota de Integração Latino-Americana – RILA”, como preferem alguns idealizadores, o projeto, que se arrasta há pelo menos 12 anos, agora tem obras físicas importantes em pleno andamento, como a ponte sobre o Rio Paraguai ligando Porto Murtinho (BR) a Carmelo Peralta (PY) e a pavimentação de vários trechos rodoviários no interior do País vizinho.
A rota prevê ligar comercialmente os oceanos Atlântico e Pacífico tendo como principais “extremos” o porto de Santos (SP) e os portos de Antofagasta e Iquique, no Chile em trajetos variáveis entre 2.396 km e 3.320 km. Dentro do Brasil, corta os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul (estradas já pavimentadas). Depois, entra pelo Paraguai, passa pelo norte da Argentina e chega ao Chile depois de vencer os Andes.
Inicialmente um desejo regional (com muito interesse dos estados do Centro-Oeste), a RILA hoje é um projeto multinacional. O Brasil sonha em escoar seus produtos (soja, milho, carne, etanol, DDG, celulose, algodão, etc.) para Ásia, Oceania e Costa Oeste da América do Norte com uma redução de até 17 dias de transporte, além de receber insumos e mercadorias com sensível redução de frete. Expectativa é reduzir tempos logísticos em até 66% e custos operacionais em algo na casa de 20%. O Chile, por sua vez, “esfrega as mãos” pela possibilidade de um enorme fluxo comercial pelos seus portos. Os chilenos, junto com os argentinos, imaginam aumentar a competitividade de seus produtos no mercado brasileiro e também apostam em uma forte demanda para a indústria turística.
Já o Paraguai, sem litoral, é talvez quem mais esteja investindo (com recursos próprios e do Fonplata – Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata) para ter conexão direta com os dois oceanos. São aproximadamente R$ 1,7 bilhão para acabar com o atoleiro e pavimentar 225 km entre as cidades de Marechal Estigarribia e Pozo Hondo. Em dezembro de 2023, parte de uma expedição brasileira (a terceira, de mapeamento do trajeto), que tentava chegar ao Chile, ficou presa no lamaçal.
Hub logístico
A cidade de Porto Murtinho (MS), com menos de 20 mil habitantes, vive a expectativa de ser a sede de um dos principais hub logísticos da América do Sul. Alguns mais empolgados já espelham a posição estratégica do município com o Canal do Panamá, que liga os dois oceanos na América Central.
Comparações a parte (exageradas ou não), quem chega a esta cidade sul-mato-grossense e se depara com a construção da ponte sobre o Rio Paraguai, ligando o Brasil ao Paraguai, começa a entender melhor todo este otimismo. Sob a responsabilidade da parte paraguaia da Itaipu Binacional, a obra orçada em pouco mais de R$ 575 milhões, já superou 60% de execução. Ao final (previsto para 2026) terá 1.294 metros de extensão, incluindo uma parte estaiada de mais de 600 metros. Do lado brasileiro, saiu em novembro de 2024 o resultado da licitação para estruturação do acesso entre a BR-267 e a ponte. São R$ 427 milhões (recursos do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC) para construir o contorno rodoviário de Murtinho, com uma alça de 13,1 km, além de um centro aduaneiro. A empresa vencedora foi a Construtora Caiapó Ltda.
A ponte é um dos três pilares de um planejamento que prevê um complexo logístico bimodal na região. Os outros dois são o “Porto de Porto Murtinho” e a “Hidrovia do Rio Paraguai”. Ambos são considerados parte estratégica para os interesses do Brasil, mas extensivo também aos demais países. As cargas oriundas tanto do leste quanto do oeste do continente poderão fazer a opção pelo modal logístico: seguir pela rodovia ou pelo Rio Paraguai a partir de Murtinho, via Argentina.
De olho nesta conexão, o governo de MS publicou no dia 13 de dezembro/2024 o edital para leilão do Porto de Porto Murtinho, que será totalmente online e realizado entre 20 e 27 de janeiro de 2025. O patrimônio ocupa uma área de 47.363,81 m² (quase cinco hectares). O lance inicial é de R$ 16.665.000,00. Os detalhes estão na plataforma digital da leiloeira.
Enquanto isso, o Governo Federal prepara a concessão de parte da hidrovia no trecho entre Corumbá (MS, na fronteira com a Bolívia) e a Foz do Rio Apa, em Porto Murtinho, com uma extensão aproximada de 600 km. No último dia 12 de dezembro, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) encaminhou a modelagem da concessão da Hidrovia do Rio Paraguai para a análise do Ministério de Portos e Aeroportos (MPor).
O investimento direto inicial estimado é de R$ 63,8 milhões. O prazo contratual da concessão é de 15 anos com possibilidade de prorrogação por igual período. Caso se concretize, será aberto novo canal para escoamentos de produtos corumbaenses (sobretudo minério) e bolivianos também pela RILA. Segundo informações da ANTAQ, a Hidrovia do Rio Paraguai transportou 7,95 milhões de toneladas em cargas em 2023, um avanço de 72,5% em relação ao volume escoado no ano anterior. Após a concessão, a previsão é de que a movimentação anual atinja de 25 a 30 milhões de toneladas a partir de 2030.
Movimentações
Além da realização de três expedições, reunindo perto de 100 pessoas em cada uma, saindo de Campo Grande (MS) rumo ao Chile (a última em dezembro de 2023), a RILA vem demandando seguidas reuniões com o objetivo de ajustar detalhes entre os países envolvidos. Nos dias 13 e 14 de novembro de 2024, por exemplo, aconteceu a oficina sobre o Plano Mestre Regional de Integração e Desenvolvimento do Corredor Bioceânico Capricórnio (PM-CBC), em Antofagasta, no Chile. Em fevereiro de 2025, o governo de MS pretende realizar um Fórum Internacional, provavelmente na capital sul-mato-grossense, onde em setembro de 2023 foi inaugurado o “Monumento RILA”, com bandeiras do Brasil, Paraguai, Argentina, Chile e Bolívia.
Uma das lideranças defensoras e idealizadoras da rota é o empresário Claudio Cavol, presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga e Logística de MS (Setlog/MS). Segundo ele, o RILA pode descongestionar o sistema portuário do Atlântico, “onde a espera por descarregamento pode durar até um mês”.
“Questões documentais”
Apesar de muito otimismo e confiança, Cavol é realista quando lista alguns gargalos e dificuldades que precisam ser superados para a operacionalização da rota. O problema alfandegário é, segundo ele, o principal: “Não se pode ficar até 15 dias parado em uma aduana de alguns destes países. Em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, por exemplo, nossos caminhões aguardam 10 ou mais dias para serem liberados. Precisamos criar uma fórmula capaz de agilizar estes procedimentos”.
Rodrigo Possari, diretor comercial da Cruzeiro do Sul Transportes (atuante em SC, SP, PR e MS) também tem a mesma preocupação: “Estamos buscando eficiência para o transporte de carga internacional pela RILA, mas enfrentamos diferentes procedimentos em termos de licença em cada país. Um deles, por exemplo, exige que tenhamos uma filial por lá para que possamos operacionalizar o transporte em seu território. Isso é muito complexo”.
Uma das cabeças pensantes e estratégicas para a viabilização do RILA é o professor PhD em economia, Michel Constantino, coordenador do Doutorado e Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB – Campo Grande, MS), que entende ser necessário um aprofundamento maior em questões de segurança pública, inteligência, mercado de trabalho qualificado e inclusão digital para a rota. Ele defende uma espécie de unificação de procedimentos nas aduanas para que eventuais cargas não fiquem pelo caminho.
Em dezembro de 2023, na última expedição pela RILA, uma carga piloto de carne bovina tentou fazer o trajeto, sem sucesso. Além do atoleiro em trechos de estrada dentro do Paraguai, Constantino lembra que houve problema relativo a “questões documentais” que barrou a viagem, uma vez que as certidões e credenciais não atendiam algumas exigências de países da rota. Para se criar uma espécie de protocolo aduaneiro único para o RILA, sua sugestão é bem objetiva: “Temos de promover um concurso de startups e pagar um prêmio pela melhor solução”. Enquanto isso (e mesmo assim), Constantino segue otimista: “Já fui informado que existem pelo menos cinco fortes empresas de logística interessadas em operar a partir da região de Porto Murtinho”, revela.