O início da produção de trigo no Mato Grosso do Sul está diretamente ligada ao início do desenvolvimento da agricultura no estado, com a chegada de produtores do Sul do Brasil que estavam acostumados com a cultura. O estado chegou a ser o terceiro maior produtor de trigo do país em 1987, com mais de 428 mil hectares da cultura, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Tudo mudou com um cenário político e econômico que impulsionou as importações de trigo argentino e com a chegada do milho segunda safra.
Em 2013, o cereal ocupou apenas oito mil hectares no Mato Grosso do Sul, a menor área da série histórica. No entanto, a partir da safra seguinte, a situação começou a mudar com o aumento das áreas de trigo no estado. Nos últimos anos, o trigo tropical voltou a ganhar espaço, relevância e, principalmente, incentivo. Instituições de pesquisa, cooperativas e o setor industrial vem adotando iniciativas para aumentar a área plantada com trigo e a produção estadual.
“Nós precisamos diversificar o nosso sistema produtivo, então nós precisamos reinserir o trigo. Segundo, há uma demanda por trigo no mercado nacional e internacional. E, em terceiro lugar, nós estamos tendo uma decadência do sistema de cultivo soja-milho. Então é a vez do trigo reaparecer. Nesse contexto todo de favoráveis condições climáticas e comerciais, também está o interesse do produtor em voltar a cultivar trigo, por um lado, e, por outro lado, já há disponibilidade de material genético suficiente para que se tenha uma triticultura tão pujante ou mais pujante do que nós tivemos na década de 1980, mas também com muito mais qualidade do que tínhamos naquele tempo”, descreve o pesquisador Claudio Lazzarotto, da Embrapa Agropecuária Oeste, de Dourados-MS.
Atualmente, o estado possui 44,5 mil hectares, com a expectativa de colher 75,8 mil toneladas, sendo apenas o sétimo maior produtor de trigo no país, na frente apenas do Distrito Federal e da Bahia. Para que o trigo siga se expandindo no estado, é preciso superar entraves que ainda dificultam a produção. Eles estão presentes desde a decisão de plantar o trigo até a comercialização.
Sementes
Um dos primeiros desafios na retomada do trigo é a produção estadual de sementes. Atualmente, esse setor está focado principalmente na produção de soja e milho, principais culturas do estado. Desta forma, a produção sementeira também precisa ser reestruturada para atender à demanda produtora.
O estado já conta com iniciativas de sementeiras que estão investindo no trigo. A unidade da Jotabasso de Ponta Porã começou a produzir sementes de trigo há três anos. Entre os motivos, está o risco que o frio e a geada representam para o milho, condições consideradas mais favoráveis para o cultivo de trigo. “A Jotabassao tem o intuito de tentar difundir um pouco mais a cultura do trigo e entende que pode ser uma ótima alternativa perante a questão do clima”, explica Cristian Barrientos, coordenador agroindustrial da Jotabasso de Ponta Porã.
Na safra passada, a produção de sementes da unidade chegou a 690 toneladas de trigo. Neste ano, a cultura foi impactada pela seca, o que deve resultar em uma produção menor. “A gente entende que tem uma redução, até o mercado vai sofrer um pouco com essa produção que vai ser reduzida”, aponta Barrientos. A meta da empresa é alcançar nos próximos anos o patamar de 1,2 mil toneladas produzidas por ano.
Brusone
Na lavoura, a brusone é a maior preocupação da triticultura no centro-oeste. “A brusone é uma doença que ainda não tem tratamento, não tem controle, não tem cultivares ainda totalmente resistentes e que, portanto, é uma doença que ainda ataca com certa intensidade em anos em que as condições de temperatura e de umidade são favoráveis a ela”, descreve Lazzarotto.
Justamente por depender de condições climáticas específicas, a doença não é considerada tão frequente. Além disso, há formas de minimizar a incidência escolhendo a melhor época de plantio, sendo que a mais indicada é o final do mês de abril e início do mês de maio. “Plantios cedo, em março, fevereiro e começo de abril, aqui em Mato Grosso do Sul, estão muito sujeitos ao ataque de brusone”, alerta o pesquisador.
“Nunca tive problema sério com brusone, a gente teve um probleminha, mas é questão de 5% da área, não chega a ser um problema para a cultura na região”, avalia Rodrigo do Amaral, Gerente da Fazenda Jaguarundy de Ponta Porã-MS.
Desafios da comercialização
Outro desafio para a produção de trigo no Mato Grosso do Sul é a comercialização do cereal. O estado possuía apenas dois moinhos de trigo em 2019, segundo a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo). A dificuldade de comercializar o trigo foi um dos fatores que levou a redução da área da cultura.
Esse cenário agora também começa a mudar com cooperativas e indústrias que estão investindo no estado. Entre essas iniciativas, está o Projeto de Segregação de Trigo da Cooperalfa. A cooperativa identificou por meio de estudos, inclusive em parceria com a Embrapa, que cultivares adaptadas ao estado fornecem grãos adequados para a produção de farinhas especiais.
“Nós identificamos que o grão do trigo daqui do Mato Grosso do Sul tem uma qualidade excelente e consegue atender os requisitos reológicos da indústria para a produção das farinhas especiais”, explica Luan Pivatto, engenheiro agrônomo da Cooperalfa.
A cooperativa, que possui indústria moageira em Santa Catarina, está garantindo aos produtores cooperados do Mato Grosso do Sul a liquidez do trigo com incentivos financeiros para viabilizar a produção e suprir a demanda. “Nós compramos o trigo do produtor que plantar dentro do projeto, independente da qualidade do grão, mesmo que não atinja os critérios que nós precisamos devido a alguma condição climática desfavorável, nós garantimos a compra. E isso dá uma segurança para o produtor”, ressalta Pivatto.
Além do trigo que é enviado a outros estados, o estado também está recebendo a instalação de novas indústrias moageiras, como a Alimentos Talita, empresa paranaense. A unidade de Dourados foi instalada em 2021, com capacidade de produção de 2,7 mil toneladas por mês. A maior parte do trigo consumido pelo moinho é produzida no Mato Grosso Do Sul e o objetivo é estabelecer parcerias para depender apenas do trigo sul-mato-grossense.
“A gente busca os trigos com as características industriais mais voltadas ao trigo melhorador e esse trigo a gente conseguiu encontrar de uma forma muito cultivada aqui no estado, o que garante ter um produto bom e com qualidade o ano inteiro”, explica Maiko Kleverson Priamo, diretor da unidade de Mato Grosso do Sul e sócio-proprietário da Alimentos Talita.
Ao se instalar no estado, a empresa encontrou diversos desafios aos quais precisou se adaptar. Entre eles está a limitação no número de fornecedores do grão, a menor estrutura de segregação, a presença de poucos cerealistas, pouco espaço e alto custo de armazenamento e até mesmo a necessidade de realizar paradas periódicas de até uma semana devido ao caruncho, inseto que pode causar prejuízos ao trigo e que é mais comum no Centro-Oeste do que no Sul do país.
A indústria conta com unidade especializada em recebimento e armazenagem de trigo com capacidade de até 1 mil toneladas, que deve ser ampliada para 2 mil toneladas com a construção de um novo silo. A empresa tem planos de construção de um novo projeto de armazenamento para o próximo ano, que deve aumentar a capacidade para 30 mil toneladas.
“A nossa intenção com isso, além de tudo, é conseguir garantir os grãos de melhor qualidade para a indústria e atender às nossas necessidades e dos nossos clientes também. E acima de tudo, ser uma grande opção para o agricultor para que na hora que ele tiver o seu trigo pronto para a colheita, ter uma cerealista totalmente disponibilizada e especializada para receber o grão dele”, explica Priamo.
Vantagens
A consolidação e expansão do trigo no Mato Grosso Do Sul ainda depende da superação desses desafios. Porém, já ocorreram avanços consideráveis, com um aumento de 456% na área entre 2013 e 2024. Um dos motivos para esse crescimento está a saturação do sistema soja-milho, considerado insustentável devido à degradação do solo e à propagação de pragas e doenças. “São duas culturas que se sucedem muito rapidamente. […] Esse monocultivo de duas espécies acaba degradando o solo e encarece todo o sistema, aumentando o custo de produção e reduzindo a rentabilidade da dupla. Quando nós pegamos o ano agrícola soja-milho, ele tem uma rentabilidade muito menor hoje do que se nós tivéssemos soja-trigo. Então soja-trigo fica mais interessante do que soja-milho”, defende Lazzarotto, da Embrapa Agropecuária Oeste.
Esse monocultivo de duas espécies acaba degradando o solo e encarece todo o sistema, aumentando o custo de produção e reduzindo a rentabilidade da dupla.
– Claudio Lazzarotto, pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste
Inclusive propriedades que não investiam há décadas no trigo já consideram a cultura fundamental no sistema produtivo. Marco Antônio Schwambach, produtor rural de Ponta Porã-MS, lembra que a família produzia trigo nas décadas de 1970 e 1980, mas parou devido aos riscos climáticos, às dificuldades de comercialização e à chegada do milho segunda safra. A família só voltou a investir no cereal há cinco anos. “Nós voltamos por causa da Embrapa e das cooperativas com a intenção de rodar a cultura, adubar, ter outro sistema radicular, quebrar doenças e deixar sempre no limpo”, afirma, se referindo à presença de plantas daninhas.
O benefício do trigo para o controle de plantas daninhas também é observado na Fazenda Jaguarundy de Ponta Porã-MS. De acordo com o gerente, é possível colher o trigo e plantar a soja em seguida sem fazer nenhuma dessecação, o que reduz os custos de produção. “O principal, o que o trigo mais agrega para a gente, não é a comercialização dele agora, é o que eu vou gastar para dessecar. Plantando trigo, eu consigo manter a minha área praticamente limpa, então só na dessecação eu consigo economizar umas três sacas de soja comparado com onde tem o milho”, ressalta Rodrigo do Amaral.
Os produtores ainda apontam outras vantagens do cereal perante às demais culturas, como o maior tempo de entressafra. “No milho é colhedeira na frente e plantadeira atrás”, conta Schwambach. No caso do trigo, é possível realizar o manejo e planejar a safra com mais tempo.
Além disso, o produtor considera que o trigo deixa uma palhada melhor do que o milho solteiro. O mesmo não ocorre no caso do consórcio de milho com braquiária, que ainda deixa mais palhada do que o trigo. “Pensando na soja, a cobertura que o trigo deixa é um pouquinho inferior a cobertura do milho [com braquiária], isso acaba impactando a produção final da soja”, explica do Amaral.
A Fazenda Jaguarundy, em Ponta Porã, atingiu nas últimas safras um rendimento de 48 a 57 sc/ha de trigo. Nesta safra, aumentou a área para mais de 1,8 mil hectares. “A gente optou por trigo por causa do custo, é uma cultura de fácil manejo, não depende muito do clima, não é tão arriscado em comparação com o milho. E o fator principal é que a nossa principal praga, que é o javali, ele não gosta muito do trigo”, resume o gerente. Com a estiagem, a propriedade espera colher apenas 15 sc/ha, o que já compensaria os custos de produção, estimados em 11 sc/ha.
Potencial
O potencial para o trigo no Mato Grosso Do Sul ainda é grande. Na avaliação da Embrapa, as regiões com maior potencial para a cultura estão no entorno do município de Dourados e na Fronteira Sul, correspondendo a cerca de 25% da área total do estado. Conforme o pesquisador Cláudio Lazzarotto, há pelo menos 200 mil hectares disponíveis com condições favoráveis para a produção de trigo com produtividades acima de cinco toneladas por hectare em todo o estado.
“O mercado de grãos está necessitando, a vontade do agricultor já está se despertando novamente e nós, das empresas, das instituições de pesquisa, já temos à disposição genética para todos os ambientes e para todas as necessidades da indústria moageira nacional”, destaca Lazzarotto.
Na avaliação do pesquisador, futuramente é possível alcançar os 400 mil hectares que o estado já cultivou na década de 1980. “É uma engrenagem monstruosa que passa a ser movimentada através da reintrodução do trigo no sistema produtivo. Nós vamos tornar o Mato Grosso do Sul um dos maiores produtores de trigo dentro de cinco ou dez anos”, afirma.
Se depender de quem está cultivando trigo no estado, ele já tem um lugar cativo no sistema produtivo. Produtores e pesquisadores consideram que ele não deve ocupar 100% das áreas disponíveis nas propriedades durante o inverno, mas que deve estar sempre presente no sistema produtivo em rotação com a soja e o milho. “Nós vemos um futuro”, resume Schwambach.
O portal Destaque Rural viajou ao Mato Grosso do Sul a convite da Embrapa com todas as despesas pagas.