Clima

Atraso do fenômeno La Niña aumenta incerteza para safras de inverno e verão

Início do fenômeno vem sendo adiado e chuvas nos próximos meses podem ser mais frequentes do que se esperava

Foto de lavoura de trigo com árvore ao fundo.
Preocupa a possibilidade de chuvas mais frequentes durante a colheita da safra de inverno | Foto: Joseani Antunes/Embrapa Trigo/Divulgação

Os fenômenos La Niña e El Niño causaram impactos significativos no agronegócio do Sul do Brasil nos últimos anos, especialmente no Rio Grande do Sul. Após dois anos de estiagens severas com o fenômeno La Niña, o El Niño propiciou fortes chuvas, alagamentos e enchentes entre 2023 e 2024. Esse último evento terminou oficialmente em junho, iniciando uma fase de neutralidade, mas já com a previsão de instalação do fenômeno La Niña no segundo semestre, o que trouxe otimismo para a safra de inverno e acendeu o alerta para as culturas de verão.

Historicamente, o La Niña causa chuvas irregulares no Sul do país, principalmente durante a primavera e o verão, o que aumenta os riscos de seca ou estiagem. Essas condições favorecem a colheita das culturas de inverno, inclusive o trigo, cuja qualidade depende do tempo mais seco durante esse período. Por outro lado, esse cenário é desfavorável para as culturas de verão, capitaneadas pela soja, que dependem da chuva ao longo do desenvolvimento.

Apesar da certeza de que o La Niña irá se instalar no segundo semestre, o início do fenômeno vem sendo adiado pela Administração Oceânica e Atmosférica Nacional do Estados Unidos (NOAA). As primeiras previsões indicavam que o La Niña poderia começar entre julho e agosto, mas agora o início já foi adiado para o início da primavera, apesar de divergências entre os modelos que apresentam a previsão. Isso significa que no final de setembro o fenômeno já deve estar consolidado, com possibilidade de começar ainda em meados de agosto.

Esse atraso se deve à temperatura das águas do Oceano Pacífico, o que configura os fenômenos El Niño, La Niña ou neutralidade. “Nós estamos vivendo um período de neutralidade. Aquelas águas muito quentes no Oceano Pacífico já não existem mais. As águas esfriaram bastante, mas não esfriaram o suficiente para caracterizar o fenômeno La Niña, que é marcado por anomalias que nós chamamos de anomalias negativas nas águas do Pacífico, quando ele fica muito mais frio do que o normal, nas suas condições térmicas, durante algum período”, explica Mozar De Araújo Salvador, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

O atraso do La Niña já muda a expectativa para o clima nos próximos meses no Sul do país, trazendo preocupação para a possibilidade de chuvas mais frequentes durante a colheita da safra de inverno. “A La Niña, para ter o efeito mais pronunciado com um impacto maior para o Rio Grande do Sul, que seria a redução das chuvas já na primavera, ela já deveria estar configurada pelo menos desde o mês passado para ter esse efeito. Mesmo que ela se configure, vamos supor, em agosto, os efeitos dela vão ser sentidos bem mais tarde”, destaca a meteorologista do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), Jossana Cera.

Intensidade e Duração

Até o momento, as previsões e os meteorologistas indicam que o próximo fenômeno La Niña será de intensidade fraca a moderada e que também será mais curto, durando cerca de sete a oito meses. Porém, é importante ressaltar que essa é a previsão inicial, portanto ainda pode mudar.

Além disso, o La Niña ainda traz mais um elemento de preocupação, o repique. “O fenômeno parece que vai acabar, chega a atingir durante um mês uma condição de neutralidade e volta à condição de La Niña”, explica Salvador. O meteorologista do Inmet lembra que esse foi o caso do último La Niña, que apresentou um repique de força considerável, fazendo com que o fenômeno perdurasse por cerca de dois anos e meio, inclusive com intensidade forte.

Além do próprio fenômeno La Niña, outros fatores precisam ser considerados para analisar o clima nos próximos meses. Estael Sias, meteorologista da MetSul, aponta, por exemplo, que a alta temperatura do Oceano Atlântico Tropical pode chegar até a neutralizar o impacto do La Niña. O índice da Antártida negativo também é uma condição que pode favorecer ciclones mais tardios.

“Olhar só para o La Niña e planejar a safra olhando só para o La Niña pode ser um risco. Tem que ter uma visão mais ampla de todas as variáveis diante da condição do fenômeno de fato se confirmar em uma tendência de fraca intensidade e de ciclo curto, diferente do último La Niña”, destaca a meteorologista.

Esses fatores estão tornando a previsão do tempo para o ano de 2024 mais complexa e com mais incertezas. De forma geral, os meteorologistas preferem esperar para consolidar previsão de mais longo prazo, mas alguns pontos de atenção já podem ser levantados.

Impactos na Safra de Inverno

A safra de inverno no Sul do país está em andamento, com 85% da área de trigo implantada no Rio Grande do Sul, segundo a Emater/RS-Ascar, e com a semeadura praticamente encerrada no Paraná. Desde o início da safra, o clima é apontado com um fator de otimismo, com a expectativa do La Niña reduzir as chuvas durante a colheita.

Esse seria um importante fator para recuperação das principais culturas desta época depois da frustração causada pelo excesso de chuvas no ano passado.

Agora, no entanto, é preciso ter mais cautela com a previsão dos próximos meses, já que o atraso do La Niña aumenta a possibilidade de chuvas mais regulares. Para que houvesse uma redução das chuvas entre setembro e abril, o La Niña teria que estar plenamente estabelecido com o resfriamento das águas do Oceano Pacífico, o que ainda não aconteceu e só deve ocorrer entre agosto e setembro. “Em seguida, nós temos que ter uma resposta que nós chamamos de resposta atmosférica, o acoplamento da atmosfera, que é quando a atmosfera passa a sofrer a influência dessa condição do oceano”, explica Salvador. Isso só costuma ocorrer de um a dois meses após o resfriamento das águas do Oceano. Só a partir disso que os efeitos no clima do Brasil começarão a ser sentidos.

Ainda há possibilidade de que as chuvas diminuam até o final do ano, mas isso já não é mais esperado para os próximos meses. “A gente ainda deve ter chuvas um pouco mais frequentes e um pouco mais regulares e volumosas até que o fenômeno de fato se estabilize e aí potencialize o risco, inclusive de seca, mais para frente”, ressalta o meteorologista do Inmet. A tendência até setembro é de chuvas mais regulares e mais frequentes, podendo até ficar acima da média em algumas áreas da região sul do Brasil, principalmente entre o Norte do Rio Grande do Sul e o Centro-Sul do Paraná, de acordo com Salvador.

“O risco de chuvas abaixo da média só deve ocorrer depois que o fenômeno se estabilizar, muito provavelmente no final da primavera. Até lá, nós vamos ter uma certa flutuação, com períodos de chuvas mais frequentes, de uma semana a dez dias, intercalado com alguns períodos de pouca chuva, como nós estamos vivendo agora, justamente no Rio Grande do Sul”, explica o meteorologista.

“Isso traz problemas, talvez para trigo que já vai estar no campo e para o início da implementação, da semeadura das lavouras de arroz, então traz todo impacto nesse sentido, se essas previsões se confirmarem”, aponta Jossana Cera, do Irga.

Além da tendência de chuva próxima da média histórica para essa época do ano, a meteorologista Estael Sias alerta para a possibilidade de aumento na frequência de temporais localizados, o que inclui vendavais e chuva de granizo. “Não acredito que tenha excesso de chuva, mas pode ficar dentro da média, talvez até um pouco abaixo. O que preocupa realmente é o risco de tempestades que pode trazer o granizo, que pode pontualmente trazer uma situação de vendaval e também até mesmo algum excesso de chuva, mas muito regionalizado”, avalia.

O período de transição da neutralidade para o La Niña também aumenta o frio e o risco de geadas tardias, que podem se estender para o final do inverno e início da primavera, o que também pode prejudicar algumas lavouras de inverno. “O La Niña é um fenômeno que potencializa temperaturas mais baixas e, como consequência, o risco de geada aumenta, principalmente na região Sul. O período de neutralidade tem características um pouco parecidas com o fenômeno La Niña. […] Então a possibilidade de ter geadas tardias é muito mais alta agora, nesse período de transição de neutralidade para La Niña do que naquele período que nós estávamos vivendo, que era de El Niño”, alerta Salvador.

Impactos na safra de verão


A principal safra e cultura do Sul do país se desenvolvem ao longo do verão, com destaque para a soja. Essa cultura sofreu durante os anos de La Niña com estiagens intensas. Na safra 2023/2024 havia expectativa de recuperação, porém chuvas em excesso na época de plantio e na colheita reduziram a produção.

Apesar da possibilidade de redução das chuvas, devido ao La Niña, ainda não há nenhuma certeza ou previsão de quando isso irá ocorrer. É preciso considerar também que outros fenômenos podem influenciar no regime de chuvas. “No cenário que a gente enxerga agora, eu olho com otimismo, não acredito que a gente vai ter uma seca, não há nenhum indicativo nesse momento que indique isso”, ressalta Estael, da MetSul.

A expectativa, segundo a meteorologista, é de um verão com chuvas irregulares, mas dentro da normalidade para o Sul do Brasil. “Ainda não há uma sentença de seca, uma sentença de um verão sem chuva com grandes prejuízos na agricultura. Até porque, com toda essa revisão dos dados, há um indicativo de um fenômeno que não será tão intenso e nem tão longo”, destaca.

Ela ainda lembra que os mananciais e açudes, principalmente do Rio Grande do Sul, estão cheios devido às chuvas dos últimos meses. “Para a fase de plantio, acredito que não haja grandes problemas. No ano passado houve um atraso em razão do excesso de chuva. Acredito que nesse ano haverá uma situação mais confortável para o produtor rural, para o agricultor planejar a sua safra de verão”, avalia.

Prevenção

Os últimos fenômenos La Niña e El Niño deixaram para trás um rastro de destruição e de prejuízo. O impacto de ambos foi mais severo nesses últimos anos, com estiagens mais prolongadas e chuvas mais intensas, o que demonstra a necessidade de planejamento e adaptação, especialmente para o próximo evento de La Niña.

“Os gestores, os agricultores, as pessoas que dependem muito dessa condição de chuva, que podem ser afetados por essa irregularidade, têm que já pensar nesse risco potencial e ver as ações que podem tomar com relação a uma possível condição de chuvas menos frequentes e saber como gerenciar os seus recursos de água. Isso é uma tendência e um risco que se pode ter e que é iminente sempre que se tem um fenômeno La Niña”, ressalta Salvador.

Essas ações, além da próxima safra, devem considerar também a possibilidade de futuros fenômenos La Niña e até El Niño, assim como a própria mudança climática, que vem acentuando fenômenos climáticos e causando tragédias.