Agronegócio

De onde vem e para onde vai o vínculo do arroz e do feijão com os brasileiros

A simplificação aqui feita é para ajustar ao propósito do artigo e evidenciar que se trata de um assunto com vinculação em vários campos da ciência.

A proposta do presente artigo é refletir sobre a contemporânea relação do arroz e do feijão com a população do Brasil. Para atingir o objetivo, julgou-se pertinente revisitar a história da formação do hábito alimentar dos brasileiros. A opção por este escopo se deve ao fato de que a definição do hábito alimentar resulta de um complexo conjunto de condicionantes, especialmente, ligado à disponibilidade e à cultura loco-regionais; assim, a incorporação de um alimento ao repertório cotidiano responde a múltiplas dimensões, das quais o valor nutritivo nem sempre é a principal.

Ou seja, acontece no território, que abarca uma população com ligação histórica e cultural, com organização própria, atitudes e desenvolvendo atividades sociais e econômicas vinculadas às características edafoclimáticas e fenômenos naturais, além de influências de tendências e dinâmicas externas. Indubitavelmente, o tema é muito mais complexo. A simplificação aqui feita é para ajustar ao propósito do artigo e evidenciar que se trata de um assunto com vinculação em vários campos da ciência.

Os brasileiros têm origem multicultural e a alimentação das populações originárias recebeu rica influência dos que aqui chegaram a partir do período colonial. A popularização do arroz no Brasil ocorreu no século 18. O arroz, já era usado na África, veio como um dos principais alimentos usados nos navios negreiros. Há indícios que, à época da chegada dos europeus, o feijão já era conhecido pelos indígenas nativos, que no século 16, abasteciam os centros urbanos que estavam em formação, com abóbora, milho, mandioca e carne de caça. Em troca, recebiam bugigangas diversas, como facas e machados, dentre outros utensílios que se tornaram úteis à vida, em evidente transformação, daqueles povos.

Os portugueses não só adotaram, como levaram o que comer com regularidade para a Europa. Esta mescla racial e alimentar incorporou sabedorias e conhecimentos adaptados às condições locais no preparo dos alimentos, conciliando, muitas vezes, novas formas de cocção diante da falta de ingredientes, temperos e condimentos usados nos países de origem dos imigrantes. Com o tempo, muitos deles foram trazidos e incorporados à culinária brasileira.

Não é retórica dizer que a constituição e a integração do arroz e do feijão vai além de ser o prato síntese, pois reflete atitudes e comportamentos do Brasil. Apresentam uma conciliação e conformidade estética de cheiro, sabor e cor valorizados e apreciados pelos brasileiros, indiferente de condição social e econômica. Espelham a origem de produção do arroz e do feijão em diversas regiões e sistemas agroalimentares sustentáveis, preparos em panelas diferentes, com temperos variados e tempos de cocção desiguais, numa incrível onipresença em todas regiões e em heterogeneidade de preparações e cardápios (Figura Abaixo).

Hábito é um costume frequente e consciente de um ato aprendido, muitas vezes adquirido por meio de gerações, pela repetição em um determinado contexto, carregado de memórias e referências. Quando isto ocorre, a prática passa a fazer parte da tradição e da identidade de um povo ou indivíduo. Um hábito, contudo, pode ser modificado, mas não sem algum esforço. Isto pode ocorrer por vários motivos. Passa, por exemplo, a ser identificado como negativo ou inconveniente, seja por questões de saúde, mudança de status social, religião, influência da mídia fazendo marketing atrelado ao convencimento e ao sentimento de pertencimento. Neste caso, em anos historicamente mais recentes, na maioria das vezes, a difusão da ideia de praticidade, conveniência e saúde associada a alimentos “artificiais”, elaborados a partir da mistura de produtos derivados de diferentes grãos ou adição de substâncias que simulam sabores, estimula o consumo e possibilita sua vinculação a uma marca comercial. Alguns destes alimentos são conhecidos como ultraprocessados. Via de regra, têm como características, baixo custo, conveniência, longa duração, produção de forma exclusivamente industrial, são intensamente propagandeados, constituindo-se em peças de mercados globalizados.

O hábito alimentar, além das características descritas anteriormente, guarda forte correspondência com as condições financeiras para aquisição dos alimentos, a disponibilidade destes ao longo do tempo, e efeitos da injustiça social, tanto no âmbito familiar quanto no coletivo ou no comunitário. Neste contexto, exacerba que a relação dos indivíduos com os alimentos não se resume no consumo para atender às necessidades fisiológicas, adequação biológica demandada pelos indivíduos, manifestações hedônicas, referência cultural, mas também está vinculado a regras, significados e valores.

Atualmente, um tipo de influência que pode ser considerada como regra são as mensagens emitidas por especialistas sobre o impacto dos alimentos na saúde, dos impactos negativos no meio ambiente gerados pela produção de alimentos, além do forte marketing voltado para certos tipos de produtos que simulam “comida de verdade”, tanto no plano da saúde individual como coletiva. Assim, além de toda complexidade envolvida com o comer, o consumidor, para decidir o que consumir, ainda tem que saber lidar com os riscos associados a padrões alimentares pouco saudáveis.

Algumas tendências que incidem sobre a alimentação são criadas na poderosa internet, auxiliada por algoritmos para direcionar as informações, divulgar com frequência dietas milagrosas, prometendo “limpeza” do organismo (alimentos “detox”), emagrecimento, curas de doenças, entre outras alegações. Impressionante como este tipo de notícia se espalha. De forma contrária, comunicações sobre alimentos e alimentação saudáveis feitas por especialistas não tem a mesma repercussão.

Neste espaço, no caso do arroz e do feijão, ainda surgem notas com inverdades sobre o real valor nutricional, associando o consumo desta mistura às condições e situações indesejadas, como engordar, causar doenças; colocando-os entre os alimentos antiquados, não adequados ao atual padrão de vida e apropriados às famílias de baixo poder aquisitivo. Notícias sobre a relação do arroz e do feijão com doenças contrariam evidências científicas de que estes alimentos, quando ingeridos como parte de dieta rica em outros alimentos de origem vegetal e com participação moderada de alimentos de origem animal, contribuem para a prevenção de várias doenças crônicas, como diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares. Outra informação amplamente compartilhada nas redes sociais diz respeito à estrutura social. Da mesma forma, estas passaram a ter grande influência no estabelecimento das práticas alimentares.

Apesar de persistente redução do consumo per capita, o arroz e o feijão continuam sendo o carro chefe da alimentação do brasileiro. Em 1959, o consumo do arroz era de 50kg/habitante/ano, atualmente, estima-se em 34 kg/habitante/ano. No mesmo período, o feijão passou de 25 kg/habitante/ano para 15 kg/habitante/ano. Uma hipótese presumível para essa continuidade está no fato de estes alimentos fazerem parte da história do país. Parte da população adulta e idosa cresceu numa época em que estes produtos eram supremos e assíduos no cardápio diário, e, praticamente, inexistia alternativa de substituição na composição das refeições.

São várias as letras de músicas exaltando a junção do arroz e do feijão. Uma delas explicita em canção popular: “… E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa que nem feijão com arroz…” (Eduardo e Mônica). Esta recorrente de expressão é outra forma reveladora da importância destes produtos no dia a dia da sociedade brasileira. O verso refere-se a uma combinação perfeita. Fato, este, comprovado cientificamente.

O arroz e o feijão sozinhos não são suficientes para garantir uma boa alimentação, sendo fundamental observar o consumo de outros alimentos que suplementam as necessidades nutricionais dos indivíduos, garantindo uma boa alimentação e redução de doenças oriundas do consumo de alimentos inapropriados.

A atual situação de insegurança alimentar, agravada pela pandemia do Covid-19, quando estima-se que 20 milhões de cidadãos no Brasil encontram-se em situação de fome, torna ainda mais relevante o papel do arroz e feijão, em virtude do incremento do valor nutricional, principalmente, quando consumidos juntos, suprindo carências nutricionais, fornecendo calorias (energia), proteínas, fibras, vitaminas do complexo B, minerais como ferro, potássio, cobre, fósforo e manganês. Outra contribuição do arroz e do feijão está na agenda de incentivo à alimentação adequada e saudável e nas recomendações embasadas no Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA).

Expor até quando e quanto o arroz e feijão no Brasil continuam sendo os ingredientes básicos do prato dos brasileiros é tarefa complexa. Depende da análise de um cenário complexo que envolve onde e quem está consumindo estes dois produtos, condições financeiras e de saúde, cadeias de produção e comercialização, e outras tantas variáveis. Sem este nível de detalhamento, pode-se dizer que, no momento, o grande desafio é ter estratégia para manter estes produtos em destaque na composição alimentar básica.

O que se apresenta para o momento é que o arroz e o feijão no Brasil continuam sendo largamente consumidos em inúmeros tipos de preparos e sendo extensamente plantados e, inegavelmente, fazem parte da identidade alimentar da população brasileira. Fato que confere a estes dois produtos traço importante de brasilidade.

Tal característica, no entanto, pode não ser suficiente para interromper a notória redução do consumo per capita. O cenário mais provável, no curto prazo, é que o consumo se mantenha ou até mesmo aumente, naquelas famílias com restrições financeiras, causadas pela pandemia, com reflexo no poder aquisitivo de alimentos. No longo prazo, caso não seja feita alguma intervenção em defesa do arroz e do feijão, certamente, pode ser mantida a tendência de redução de consumo per capita.

Em termos concretos, a manifestação intersetorial em defesa do arroz e do feijão evoca parcerias do governo, instituições de pesquisa, universidades e o setor privado. E isso, tanto por razões de complementaridade de missões institucionais e dos compromissos com o bem-estar, como de responsabilidade social, de gestão pública e de fortalecimento das cadeias produtivas. Por outro lado, a compreensão da presença, da complexidade e da abrangência desses produtos na vida diária das pessoas, demanda enfoque interdisciplinar.

Subsidiar e fortalecer novas perspectivas de consumo, necessariamente, passam pelo esclarecimento da população, via informações embasadas em critérios técnicos, que conduzam as pessoas a conhecer os reais benefícios do consumo do arroz e feijão; e as políticas de incentivo à produção de alimentos para abastecimento interno. É preciso garantir alimento suficiente e adequado a uma população que vive no país que bate recordes sucessivos de produtividade agrícola.

Autores:

Ivan Sergio Freire de Sousa – Sociólogo, Ph.D. em Sociologia, pesquisador da Embrapa, Secretaria de Pesquisa e Desenvolvimento – Brasília, DF

Semíramis Martins Álvares Domene – Nutricionista, doutora em Ciência da Nutrição, professora associada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Santos, SP

Carlos Magri Ferreira – Engenheiro-agrônomo, doutor em Desenvolvimento Sustentável, analista da Embrapa Arroz e Feijão, Santo Antônio de Goiás, GO