O agronegócio brasileiro é um pilar da nossa economia, e a forma como os insumos (fertilizantes, defensivos, sementes) chegam ao produtor é vital. Por muito tempo, o mercado de distribuição foi composto por empresas menores, mais regionais. Nos últimos anos, vimos uma onda de fusões e aquisições (M&A), com o objetivo de criar grandes empresas, mais eficientes e com maior poder de barganha. A ideia era ter um setor mais robusto.
Curiosamente, esse impulso pela consolidação não é novo. Vimos uma tendência semelhante no setor de supermercados com a entrada de gigantes globais como Carrefour, Walmart, Dia e Makro. No entanto, seu tamanho, aliado à falta de adaptação à diversidade regional do Brasil e à centralização excessiva, acabou pavimentando o caminho para o crescimento de fortes redes regionais como Bretas, Savegnago e Muffato.
1. A Promessa de Gigantes e a Realidade do Campo
No setor de insumos agrícolas, a narrativa ecoa esse padrão: enquanto alguns grandes consolidadores enfrentam obstáculos significativos, estamos testemunhando a expansão bem-sucedida de redes como Ouro Safra, Protec e Uniagro. Além disso, iniciativas de M&A mais estruturadas, particularmente aquelas empreendidas por empresas japonesas como Sumitomo e Marubeni, se mostraram mais bem-sucedidas devido à sua compreensão e respeito mais profundos pelas características regionais dos agricultores brasileiros.
O caso da Agrogalaxy é particularmente relevante para mim, pois participei do início da construção desse gigante. Com base nessa experiência, posso afirmar que sua trajetória se tornou um exemplo claro e factível de como ambições de crescimento podem levar a rupturas e à perda de confiança no sistema. Além da Agrogalaxy, outras grandes empresas como Lavoro, Nutrien e Sinova trilharam caminhos semelhantes, enfrentando seus próprios desafios. A Agrogalaxy, que mais investiu em aquisições para se tornar líder, acabou pedindo recuperação judicial. Este caso serve como um alerta e nos ajuda a entender os problemas que podem surgir de estratégias de crescimento tão agressivas.
2. O Alerta da Agrogalaxy: Uma Análise Detalhada
A recuperação judicial da Agrogalaxy, em setembro de 2024 , não foi um evento isolado, mas o ápice de uma série de problemas financeiros e operacionais.
- Crescimento Agressivo e Dívida Alta: A estratégia da Agrogalaxy foi baseada em aquisições agressivas, financiadas em grande parte por dívidas. Sua dívida bruta ajustada atingiu R$ 2,2 bilhões em setembro de 2024, e a empresa consistentemente apresentava EBITDA negativo, um sinal de que suas operações não geravam fluxo de caixa suficiente para cobrir despesas e dívidas crescentes.
- Crise de Confiança e Governança: A incapacidade de honrar um pagamento de R$ 70 milhões precipitou o pedido de recuperação judicial. No mesmo dia, o CEO e cinco dos nove conselheiros da empresa renunciaram, indicando uma profunda crise de confiança e uma possível falha na governança interna.
- Impacto na Cadeia de Suprimentos: A Agrogalaxy declarou um passivo total de R$ 4,67 bilhões, com R$ 1,5 bilhão devido a fornecedores, incluindo grandes empresas como Mosaic Fertilizantes e Rainbow Defensivos Agrícolas. A falha de um distribuidor tão grande em honrar esses pagamentos gera um efeito cascata em toda a cadeia de suprimentos agrícola, podendo desestabilizar múltiplos elos.
O que aprendemos com a Agrogalaxy:
- Cautela no M&A: Crescer rapidamente por meio de aquisições e dívidas, sem um aumento robusto na lucratividade operacional ou geração de capital interno suficiente, é uma estratégia de alto risco que pode levar ao colapso financeiro.
- Risco Sistêmico: A dívida com fornecedores de grande porte evidencia a interconexão e a fragilidade do ecossistema do agronegócio, onde a dificuldade de um grande participante pode desestabilizar toda a cadeia.
- Sinais Internos: Mudanças abruptas e significativas na liderança, precedendo grandes eventos de estresse financeiro, podem ser fortes indicadores de problemas subjacentes graves e de um reconhecimento interno de uma situação insustentável.
3. O Cenário Macro e Setorial: Uma Tempestadade Perfeita
O setor de distribuição de insumos agrícolas opera em um ambiente complexo, onde fatores macroeconômicos e setoriais exercem influência decisiva.
- Juros Altos (Selic): A taxa Selic elevada aumenta diretamente o custo da dívida para as distribuidoras e para o financiamento do crédito que estendem aos agricultores. Mesmo uma queda na Selic pode tornar o crédito rural direcionado menos atraente para o setor financeiro, reduzindo a disponibilidade de fundos subsidiados.
- Preços Voláteis das Commodities: A flutuação dos preços das commodities agrícolas (como soja e milho) impacta diretamente a rentabilidade e o fluxo de caixa do produtor rural. Quando os preços caem, a receita dos agricultores diminui, afetando sua capacidade de pagamento pelos insumos adquiridos a crédito e aumentando o risco de crédito para as distribuidoras.
- Crédito Rural Desigual: O Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) concentra recursos subsidiados em grandes produtores. Isso faz com que produtores de menor e médio porte, e as distribuidoras que os atendem, enfrentem maiores obstáculos para acessar financiamento subsidiado, dependendo mais de crédito privado com custos mais elevados.
- Competição com Cooperativas: Em um ambiente onde as cooperativas são mais verticalizadas e possuem sistemas de financiamento ao agricultor mais robustos, a competição pode levar à queda de rentabilidade e ao atendimento de agricultores mais descapitalizados.
- Riscos Climáticos e Sanitários: A agricultura é inerentemente exposta a riscos climáticos (secas, inundações) e sanitários (pragas, doenças). A incipiência do seguro agrícola no Brasil significa que, em caso de perdas de safra, o ônus financeiro da inadimplência pelos insumos frequentemente recai sobre as distribuidoras, transferindo o risco operacional agrícola para um risco de crédito financeiro direto.
Em resumo, esses fatores criaram uma tempestade perfeita: Juros altos elevam os custos das distribuidoras, enquanto a queda nos preços das commodities e o acesso desigual ao crédito rural para pequenos e médios produtores aumentam o risco de calote. A fragilidade do seguro agrícola, por sua vez, transfere o risco do campo para as distribuidoras.
4. Vulnerabilidades Operacionais e Financeiras Internas: Os Calcanhares de Aquiles
Além dos ventos contrários macroeconômicos, as distribuidoras de insumos agrícolas enfrentam vulnerabilidades operacionais e financeiras intrínsecas ao seu modelo de negócio.
- Descompasso no Capital de Giro: A sazonalidade do ciclo agrícola cria um descompasso fundamental no fluxo de caixa: as distribuidoras pagam pelos insumos com antecedência, mas só recebem dos produtores muito depois da colheita. Isso gera uma demanda significativa e contínua por capital de giro, que é muitas vezes financiada por dívidas caras.
- Estoque Ineficiente: Manter grandes volumes de insumos em estoque para atender aos picos de demanda exige sistemas sofisticados de previsão e gestão. A infraestrutura de armazenagem inadequada, com produtos armazenados a céu aberto e perdas por deterioração ou vencimento, gera perdas financeiras diretas. A aplicação ineficiente de ferramentas de gestão como ERP e Curva ABC agrava os problemas de estoque.
- Logística Deficiente: As vastas dimensões do Brasil e a infraestrutura deficiente resultam em dependência excessiva do transporte rodoviário, que eleva custos e tempos de trânsito. A subutilização de modais mais eficientes como ferrovias e hidrovias, somada à burocracia e tributação complexa, tornam o processo logístico lento e oneroso.
- Risco Cambial: Muitos insumos agrícolas são importados e cotados em dólar americano. A desvalorização do Real aumenta diretamente o custo de aquisição desses insumos, corroendo as margens e aumentando a necessidade de financiamento adicional.
A soma de tudo isso é clara: O descompasso no capital de giro, somado aos juros altos, aumenta o risco de liquidez. Ineficiências na gestão de estoque e na logística elevam os custos e corroem a lucratividade. O risco cambial, por sua vez, amplia a necessidade de financiamento.
5. O Crescimento por Aquisições: Riscos Estratégicos e Desafios de Integração
A estratégia de crescimento por meio de aquisições, embora promissora em teoria, apresenta riscos estratégicos significativos, especialmente quando a complexidade da integração pós-fusão é subestimada.
- Concentração de Mercado: O setor de insumos agrícolas é caracterizado por uma estrutura de mercado oligopolística, com fusões globais entre os principais fabricantes reduzindo o número de grandes players. Esse aumento da concentração na fabricação pode reduzir a pressão competitiva sobre os preços para as distribuidoras e, consequentemente, para os agricultores.
- Dificuldade de Integração Pós-Aquisição: A literatura geral sobre M&A enfatiza que um número significativo de fusões e aquisições “destroem valor” em vez de criá-lo, muitas vezes devido à execução deficiente dos mecanismos de integração. A integração rápida de inúmeras entidades adquiridas, com diferentes práticas operacionais, sistemas de TI, processos de cadeia de suprimentos e culturas corporativas, é uma tarefa complexa. A estratégia de aquisição extensiva da Agrogalaxy sugere que a empresa provavelmente enfrentou esses desafios, onde o ritmo da integração pode ter superado suas capacidades organizacionais.
Em resumo: Crescer agressivamente por M&A, sem uma boa integração, leva a ineficiências operacionais e anula os benefícios da escala. A busca por tamanho pode fazer a empresa perder agilidade e eficiência.
6. Implicações e o Caminho a Seguir para o Setor
O caso Agrogalaxy e as análises dos fatores que levaram à sua recuperação judicial têm implicações de longo alcance para todo o setor de distribuição de insumos agrícolas no Brasil.
- Crescimento Mais Cauteloso: O fracasso de um grande consolidador como a Agrogalaxy provavelmente instilará cautela em futuras estratégias agressivas de M&A, podendo desacelerar o ritmo da consolidação ou direcionar para aquisições mais seletivas. Isso pode reforçar a posição de players existentes financeiramente robustos ou até mesmo encorajar uma refragmentação do mercado com distribuidores menores e regionalmente focados.
- Riscos para Produtores e Cadeia: A falha de uma distribuidora significativa pode perturbar o fornecimento de insumos críticos aos agricultores e gerar efeitos cascata significativos a montante, causando tensão financeira para fabricantes e outros prestadores de serviços.
- Gestão Robusta: O caso Agrogalaxy serve como um alerta para a necessidade crítica de as distribuidoras priorizarem uma gestão financeira sólida, com políticas de alavancagem prudentes, planejamento de fluxo de caixa robusto e estratégias eficazes de mitigação de riscos. A excelência operacional, especialmente em gestão de estoque e logística, é primordial para a rentabilidade e resiliência.
Recomendações para o Futuro:
- Crescimento Sustentável: Priorizar o crescimento orgânico, focando em serviços aprimorados e soluções personalizadas. Parcerias estratégicas e joint ventures podem ser alternativas ao M&A agressivo, permitindo ganhos de escala sem dívidas excessivas ou complexidades de integração.
- Resiliência Financeira: Diversificar as fontes de financiamento, reduzindo a dependência excessiva de dívidas de curto prazo. Implementar estratégias robustas de gerenciamento de risco, como hedging para mitigar flutuações cambiais e volatilidade dos preços das commodities. Uma gestão prudente do capital de giro é vital, otimizando os níveis de estoque e negociando termos de pagamento mais favoráveis. Promover ativamente o uso de seguro agrícola para desonerar os recebíveis dos agricultores.
- Eficiência Operacional: Investir na otimização logística, incluindo o desenvolvimento e a utilização de soluções de transporte multimodal. Na gestão de estoque, implementar modelos sofisticados de previsão de demanda e investir em instalações de armazenagem modernas e com controle climático para prevenir a deterioração do produto. Garantir a utilização eficaz dos sistemas ERP.
- Políticas Públicas Favoráveis: Os formuladores de políticas têm um papel crucial no fortalecimento do seguro agrícola, no investimento em infraestrutura logística multimodal e na revisão das políticas de crédito rural para garantir um acesso mais amplo e equitativo ao financiamento para produtores de todos os portes.
Ao aprender com os desafios da consolidação, o setor de distribuição de insumos agrícolas no Brasil pode construir um futuro mais forte e sustentável. No início de agosto, teremos o Congresso da Andav, um excelente momento para observarmos como o sistema de distribuição resistiu a essas tormentas e para discutirmos os caminhos para um futuro mais próspero para o agronegócio brasileiro. Conto com sua presença para debatermos esses importantes temas!