
Eu me sinto no dever, como um ator do agro e como cidadão indignado, de colocar em palavras a repulsa que me consome. O instrumento da Recuperação Judicial (RJ), concebido para ser um mecanismo de preservação da função social da empresa, está sendo vulgarizado e instrumentalizado por grandes players, muitas vezes sob a gestão fria e calculista como uma tática desleal de gestão de passivos.
A indignação que me atravessa e que permeia o mercado honesto é a constatação da hipocrisia corporativa nojenta. Eu vi, com meus próprios olhos, um desses grandes fundos que pediram RJ — fundos que deveriam estar envergonhados — celebrando nas redes sociais!
Uma celebração que, ao invés de júbilo, deveria ser um momento de luto e consternação pelos descalabros que cometeram. O Brasil se afundou em uma seara tão profunda de falta de integridade, de corrupção moral e de falta de caráter, que eu me vi na obrigação de dar voz à minha revolta.
É absolutamente ultrajante observar a pompa e o sorriso largo de executivos e investidores que administram empresas sob proteção judicial, enquanto a inadimplência dessas ações penaliza milhares de credores e compromete a saúde de todo o sistema de crédito. Uma Recuperação Judicial não é, e jamais será, motivo de festa; é o atestado vergonhoso de um fracasso gerencial cujas consequências destrutivas se propagam pela cadeia produtiva, esmagando quem realmente trabalha.
Essas grandes corporações do agronegócio investem pesadamente em códigos de ética e estruturas de compliance robustas, alardeando uma gestão de excelência. Mas eu vos digo: a integridade, para eles, é apenas uma fachada!
O recurso à RJ na primeira dificuldade financeira significativa revela a verdade: para esses grupos, a RJ não é um último recurso para a salvação em crise genuína, mas sim uma reestruturação estratégica de portfólio. O objetivo primário é a desalavancagem rápida, transferindo o custo da má gestão, da especulação e do risco mal calculado para terceiros.
Essa conduta representa uma profunda inversão ética. A Lei de Recuperação Judicial transforma-se, na mão de gestores irresponsáveis, em um escudo contra as consequências da própria temeridade. A sofisticação jurídica é usada para blindar o capital, enquanto o trauma financeiro é imposto aos stakeholders minoritários. A RJ, quando utilizada dessa forma, não é um resgate social; é uma demolição controlada para maximizar o valor residual dos acionistas, socializando integralmente o custo da operação.
A Pandemia de RJs: A prova do abuso
A crise no agronegócio transcendeu as dificuldades sazonais, adquirindo contornos de uma verdadeira “pandemia” de Recuperações Judiciais. E os números me dão razão para a revolta:
- O crescimento dos pedidos de RJ em 2024 em relação ao ano anterior foi alarmante, chegando a impressionantes 432% em alguns segmentos.
- A concentração da dívida é o ponto-chave: as dez maiores empresas do agronegócio que solicitaram RJ em 2024 acumularam uma dívida total superior a R$ 12,3 bilhões. Não se trata de produtores isolados; são grupos com governança supostamente profissional.
A narrativa da “tempestade perfeita” – Selic alta, custos e clima – serve apenas para camuflar o fracasso na gestão de risco. Para corporações de grande porte, com acesso a consultoria e capital sofisticado, a exposição não mitigada a riscos de commodities e juros não pode ser atribuída apenas ao infortúnio. Essa dívida bilionária sugere que o crescimento foi impulsionado por uma alavancagem agressiva e excessiva, onde o risco de mercado foi conscientemente aceito. A RJ está sendo empregada como um seguro de última hora para modelos de negócios especulativos, e a narrativa da crise sistêmica não passa de uma cortina de fumaça para encobrir o fracasso da governança corporativa.
A Reação rigorosa e coletiva: O sistema financeiro em alerta
A onda de RJs abusivas gerou uma insegurança jurídica e financeira que rapidamente se transformou em restrição de crédito. Eu confirmo que o sistema financeiro reagiu em bloco, e isso prova o impacto nefasto dos grandes devedores.
Eu preciso destacar a postura do Banco do Brasil (BB). Diante de R$ 5,4 bilhões em empréstimos não pagos por apenas 808 produtores em RJ, o BB respondeu com uma postura de extrema rigidez, ameaçando suspender novos empréstimos. A declaração de que produtores em recuperação judicial “não terão crédito hoje, amanhã nem nunca mais” é, na minha opinião, um exemplo louvável de que devemos elevar os padrões morais de se fazer negócio no Brasil! Eu me recuso a aceitar que dar o calote vire algo corriqueiro e normal.
Mas a ameaça é sistêmica. A FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos) já expressou publicamente a profunda preocupação coletiva das instituições financeiras com o aumento dos pedidos de RJ. Embora o BB, como maior financiador, tenha sido o mais vocal, sua política drástica serve de sinal verde para que outras instituições adotem políticas similares, impactando a disponibilidade de crédito para todo o campo.
O que os bancos temem? A verdade é que eles temem a RJ porque ela equilibra a relação de forças, limitando seu poder de impor unilateralmente condições e, crucialmente, restringindo sua capacidade de reaver garantias (como a terra dada em hipoteca ou alienação fiduciária).
O pior é que o aumento do risco sistêmico gerado pelas RJs dos grandes grupos força os agentes financeiros a adotarem posturas conservadoras, e o resultado é a penalização da conformidade. As exigências de garantias mais sólidas e a redução dos prazos de negociação são custos de segurança que são inevitavelmente repassados a todos os produtores, penalizando o honesto e solvente. Desta forma, os grandes grupos, ao minar a confiança do crédito, elevam o custo de capital para quem trabalha direito, sufocando a competitividade de toda a cadeia.
O Insucesso e a cumplicidade judiciária
Os dados revelam que a reabilitação empresarial é a exceção, não a regra. Apenas 25% das empresas em RJ se recuperam financeiramente. Quando o insucesso é a norma, eu suspeito fortemente de desvio de finalidade. A RJ se transforma em um instrumento para: obter moratória legal, promover um corte drástico (haircut) nas dívidas sem garantia, e proteger ativos valiosos até que as condições de mercado permitam uma venda vantajosa. O foco não é na manutenção de empregos, mas em minimizar a perda de capital próprio do fundo, transferindo o risco para os credores.
A complacência do Judiciário me revolta! O Poder Judiciário tem a responsabilidade final de fiscalizar e coibir desvios de finalidade. No entanto, tenho acompanhado o crescimento da aparente leniência judicial em filtrar o uso oportunista da RJ. O juiz tem o dever legal de “ter bom senso para evitar excessos supostamente pretendidos pelos devedores”. Eu peço encarecidamente que o sistema judiciário questione ativamente a integridade dos Conselhos e altos executivos que se valem da RJ.
A “disparidade nas interpretações judiciais” sobre a Lei 14.112/20 gera grande insegurança. Quando se permite o sequestro integral da produção, comprometendo as garantias do credor, a previsibilidade do mercado é destruída. Ao permitir que grandes devedores litiguem garantias previamente pactuadas, o Judiciário, inadvertidamente, facilita o desvio de finalidade e incentiva a prática de RJs oportunistas.
O meu grito de revolta pelos Esquecidos: Em defesa do pequeno empreendedor
Este é o ponto que mais me dói e onde a minha indignação atinge o ápice. O elemento mais cruel de toda essa onda de Recuperações Judiciais é quem realmente paga a conta da irresponsabilidade corporativa: os pequenos e microempresários!
Grandes empresas devem bilhões a bancos (que possuem instrumentos de mitigação de risco e provisionamento), mas o impacto mais devastador recai sobre os credores quirografários—os pequenos fornecedores que ficam no final da fila.
Eu me coloco no lugar deles: a Oficina Mecânica que prestou serviços para a frota, o Posto de Gasolina que forneceu combustível em volume, a Marmitaria que alimentou os funcionários. Estes pequenos negócios não têm garantias reais e dependem visceralmente do fluxo de caixa diário ou semanal. Para um grande grupo, a dívida de R$ 4 bilhões atinge milhares de microempresas.
- Para um grande banco, R$ 500 mil é provisão de rotina.
- Para a oficina local, R$ 500 mil em contas a receber de um devedor em RJ é o capital de giro de vários meses!
Eles não possuem estrutura para se sustentar enquanto aguardam um plano de pagamento que pode levar décadas, ou resultar em um haircut que equivale a quase nada. Para o pequeno empresário, a Recuperação Judicial do gigante é um golpe fatal em seu negócio!
A RJ de grandes grupos corporativos é, em essência, uma transferência de perda organizada e injusta. A preservação da “grande empresa” cuja governança falhou ocorre à custa da destruição de múltiplas pequenas e médias empresas, fontes genuínas de renda e produção regional. O efeito socioeconômico local é desastroso. Eu me recuso a aceitar que a lei de recuperação penalize a base da pirâmide para subsidiar a irresponsabilidade do topo!
O alerta final – basta de abuso!
A Recuperação Judicial deve ser um ato de penitência e responsabilidade, e eu não aceito que seja uma tática financeira que permita celebração e impunidade.
Aos Conselhos de Administração e Altos Executivos: a integridade corporativa é medida pela responsabilidade no pagamento de suas dívidas, e não pelos códigos de ética que vocês penduram na parede. Eu clamo: é urgente que o Judiciário brasileiro deixe de ser complacente! É imperativo que os magistrados apliquem o princípio do abuso de direito com rigor, coibindo o uso indiscriminado da RJ que desvirtua o propósito da lei.
O Agronegócio brasileiro necessita de um resgate imediato da sua integridade, sob pena de ver seu pilar de sustentação ruir sob o peso da deslealdade institucionalizada. A conta bilionária dessa irresponsabilidade é paga, com suor e sangue, pela base da nossa economia!
